domingo, abril 16, 2006

para quê a cruz?

I. a insatisfação de Deus ou a esperança ingénua de Jesus
Virou os olhos para Jesus, fez uma longa pausa, e depois, como quem se resigna ao inevitável, começou, A insatisfação, meu filho, foi posta no coração dos homens pelo Deus que os criou, falo de mim, claro está, mas essa insatisfação, como todo o mais que os fez à minha imagem e semelhança, fui eu buscá-la aonde ela estava, o meu próprio coração, e o tempo que desde então passou não a fez desvanecer, pelo contrário, posso dizer-te, até, que o mesmo tempo a tornou mais forte, mais urgente, mais exigente. (…)”
“E a minha morte, será como, A um mártir convém-lhe uma morte dolorosa, e se possível infame, para que a atitude dos crentes se torne mais facilmente sensível, apaixonada, emotiva, Não estejas com rodeios, diz-me que morte será a minha, Dolorosa, infame, na cruz (…)”
“(…) Diz lá, Tu és Deus, e Deus não pode senão responder com a verdade a qualquer pergunta que se lhe faça, e, sendo Deus, conhece todo o tempo passado, a vida de hoje, que está no meio, e todo o tempo futuro, Assim é, eu sou o tempo, a verdade e a vida, Então, diz-me em nome de tudo o que dizes ser, como será o futuro depois da minha morte, que haverá nele que não haveria se eu não tivesse aceitado sacrificar-me à tua insatisfação (…)”

O que quero que me digas é como viverão os homens que depois de mim vierem, Referes-te aos que te seguirem, Sim, se serão mais felizes, Mais felizes, o que se chama felizes não direi, mas terão a esperança de uma felicidade lá no céu onde eu eternamente vivo, portanto a esperança de viverem eternamente comigo, Nada mais, Parece-te pouco, viver com Deus, Pouco, muito ou tudo, só se virá a saber depois do juízo final, quando julgares os homens pelo bem e mal que tiverem feito, por enquanto vives sozinho no céu, Tenho os meus anjos e os meus arcanjos, Faltam-te os homens, Pois faltam, e para que eles venham até mim é que tu serás crucificado (…)”


II. a tigela negra ou a verdade de Deus

“(…) Digo que ninguém que esteja em seu perfeito juízo poderá vir a afirmar que o Diabo foi, é, ou será culpado de tal morticínio e tais cemitérios(…) o Diabo, sendo mentira, nunca poderia criar a verdade que Deus é(…)”
“ (…) Tens no teu alforge uma coisa que me pertence. Jesus não se lembrava de ter trazido o alforge para o barco, mas a verdade é que ele ali estava, enrolado, aos seus pés, Que coisa, perguntou, e, abrindo-o viu que dentro não havia mais que a velha tigela negra que de Nazaré trouxera, Isto, Isso, respondeu o Diabo, e tomou-lha das mãos, Um dia voltará ao teu poder, mas tu não chegarás a saber que a tens. (…)”
“Depois foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.”

José Saramago (O Evangelho Segundo Jesus Cristo)


III. o sangue ou a luz

não sei de que verdades se vestem Deus e o Diabo. talvez da mesma verdade ou da mesma mentira.
Jesus, o filho de Deus, um homem entre os homens, morreu na cruz.
a insatisfação dos homens continua a ser a insatisfação de Deus, continuamente crescendo paralelamente. não somos hoje mais nada – nem mais felizes, nem mais esperançosos ou mais crentes. o céu é já oferta pouca.
resta a estória: as estórias que se escreveram do sangue que soube dar vida e que soube dar morte. sangue que enegreceu a tigela, que não mais se falou. sangue que nos deu a Luz e a paz, se a quiséssemos receber.
as vozes que dizem pregar a palavra de Deus, repetem: pecado, ridiculamente. já não têm mais o poder da infame morte na cruz, que já não têm mais a beleza, o amor, ou a paixão. nem o sangue de uma taça as pode reanimar.

hoje é páscoa – dia da ressurreição – mas já nada há para renascer.

2 comentários:

Anónimo disse...

Adorei as analogias, os escitos de Saramago e as palavras crucificadas.Adorei a estrutura que foi montada para escrever o post!Está fenomenal!Nao sei até que ponto o sangue vale a pena.Não sei até que ponto as tijelas estão sujas.De facto, o céu passou a ser oferta pouca, quando é na terra que se quer tudo.Por vezes, penso que falta a todos nós um pouco de vontade...aquela vontade inocente de chegar ao "céu".Talvez nao haja mais nada para renascer na páscoa.No entanto, a "páscoa" pode ser "quando um Homem quiser".E tu tens uma "páscoa" enorme dentro de ti.Sei que és capaz de renascer.de nascer.de morrer e voltar a nascer.

Não costumo gostar de textos assim.Quando se fala de Jesus, de Deus, de Cruzes e etc.Mas este, com o apoio do Saramago, está tão diferente...que adorei...

Adoro a tua veia de criatividade...

J disse...

Este post fez-me por o livro do Saramago na lista para ler.