quarta-feira, abril 19, 2006

canção de embalar

fiquei contigo no compasso em que dizíamos adeus
foi assim porque pude escolher.

recordo apenas a ausência da tua voz
preenche-me o silêncio, preenche-me a solidão.

deixa-me encontrar a tua boca salgada
vou partir depois de te dizer que ainda te amo.

ficava aqui esta noite até adormeceres
se me lembrasse da canção de embalar.

onda sonora: ficar (canção de embalar) – margarida pinto

domingo, abril 16, 2006

para quê a cruz?

I. a insatisfação de Deus ou a esperança ingénua de Jesus
Virou os olhos para Jesus, fez uma longa pausa, e depois, como quem se resigna ao inevitável, começou, A insatisfação, meu filho, foi posta no coração dos homens pelo Deus que os criou, falo de mim, claro está, mas essa insatisfação, como todo o mais que os fez à minha imagem e semelhança, fui eu buscá-la aonde ela estava, o meu próprio coração, e o tempo que desde então passou não a fez desvanecer, pelo contrário, posso dizer-te, até, que o mesmo tempo a tornou mais forte, mais urgente, mais exigente. (…)”
“E a minha morte, será como, A um mártir convém-lhe uma morte dolorosa, e se possível infame, para que a atitude dos crentes se torne mais facilmente sensível, apaixonada, emotiva, Não estejas com rodeios, diz-me que morte será a minha, Dolorosa, infame, na cruz (…)”
“(…) Diz lá, Tu és Deus, e Deus não pode senão responder com a verdade a qualquer pergunta que se lhe faça, e, sendo Deus, conhece todo o tempo passado, a vida de hoje, que está no meio, e todo o tempo futuro, Assim é, eu sou o tempo, a verdade e a vida, Então, diz-me em nome de tudo o que dizes ser, como será o futuro depois da minha morte, que haverá nele que não haveria se eu não tivesse aceitado sacrificar-me à tua insatisfação (…)”

O que quero que me digas é como viverão os homens que depois de mim vierem, Referes-te aos que te seguirem, Sim, se serão mais felizes, Mais felizes, o que se chama felizes não direi, mas terão a esperança de uma felicidade lá no céu onde eu eternamente vivo, portanto a esperança de viverem eternamente comigo, Nada mais, Parece-te pouco, viver com Deus, Pouco, muito ou tudo, só se virá a saber depois do juízo final, quando julgares os homens pelo bem e mal que tiverem feito, por enquanto vives sozinho no céu, Tenho os meus anjos e os meus arcanjos, Faltam-te os homens, Pois faltam, e para que eles venham até mim é que tu serás crucificado (…)”


II. a tigela negra ou a verdade de Deus

“(…) Digo que ninguém que esteja em seu perfeito juízo poderá vir a afirmar que o Diabo foi, é, ou será culpado de tal morticínio e tais cemitérios(…) o Diabo, sendo mentira, nunca poderia criar a verdade que Deus é(…)”
“ (…) Tens no teu alforge uma coisa que me pertence. Jesus não se lembrava de ter trazido o alforge para o barco, mas a verdade é que ele ali estava, enrolado, aos seus pés, Que coisa, perguntou, e, abrindo-o viu que dentro não havia mais que a velha tigela negra que de Nazaré trouxera, Isto, Isso, respondeu o Diabo, e tomou-lha das mãos, Um dia voltará ao teu poder, mas tu não chegarás a saber que a tens. (…)”
“Depois foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.”

José Saramago (O Evangelho Segundo Jesus Cristo)


III. o sangue ou a luz

não sei de que verdades se vestem Deus e o Diabo. talvez da mesma verdade ou da mesma mentira.
Jesus, o filho de Deus, um homem entre os homens, morreu na cruz.
a insatisfação dos homens continua a ser a insatisfação de Deus, continuamente crescendo paralelamente. não somos hoje mais nada – nem mais felizes, nem mais esperançosos ou mais crentes. o céu é já oferta pouca.
resta a estória: as estórias que se escreveram do sangue que soube dar vida e que soube dar morte. sangue que enegreceu a tigela, que não mais se falou. sangue que nos deu a Luz e a paz, se a quiséssemos receber.
as vozes que dizem pregar a palavra de Deus, repetem: pecado, ridiculamente. já não têm mais o poder da infame morte na cruz, que já não têm mais a beleza, o amor, ou a paixão. nem o sangue de uma taça as pode reanimar.

hoje é páscoa – dia da ressurreição – mas já nada há para renascer.

quinta-feira, abril 13, 2006

um dia

Um dia dir-te-ei:
azul
e saberás ler nos meus lábios:
azul.

Um dia dir-te-ei:
qualquer coisa,
e sentirás em ti que
desejei estar do teu lado.

Um dia dir-te-ei
que já não sou capaz,
e saberás que há muito tinha perdido
a esperança.

Um dia dir-me-ás
paz,
na esperança de recuperarmos
o amor.

eu já estarei com as estrelas
e chorarás por mim.

conversas paralelas

- hoje, tenho muitos mais anos que tu. tenho até muitos mais anos do que tinha quando tu nasceste. pode parecer disparatado, mas quero dizer-te que tenho vivido exponencialmente, tudo o que vivi poderiam ter sido muitos mas muitos mais anos por isso te peço que sejas apenas um pouco diferente, que te comportes de outra forma, que repenses os teus objectivos – pois sei que serás mais feliz, porque sei que estás a cometer erros que poderás não poder reparar.
- ouço-te, rapidamente perdes a paciência quando temos de falar. e é raro que o teu discurso seja para mim – é sempre para o alguém que tu não foste. é raro que essas palavras sejam para me proteger. essas palavras são os rumos que gostarias de ter escolhido para ti. compreendo-te, talvez um dia também eu seja assim, mesmo que hoje me pareça impossível. infelizmente eu sou apenas eu e não posso realizar nenhum dos teus desejos- a não ser que neles contemples a minha felicidade. os meus projectos são tantos que provavelmente não os realizarei a todos, talvez nem um deles, mas ao menos deixa-me sonhar que um dia irei conseguir.
- sei que antigamente tudo era diferente. a vida era outra. as exigências também. as vezes penso que até os sentimentos eram outros. estou cansada desta vida, destas rotinas. mas há muito tempo que sabia que seria assim. vejo em ti, uma força que não é minha. és parecida – nessa rebeldia, nessa atitude, nessa ideias, nessa personalidade forte, mas não comigo. entendo-te mas... o que vão pensar? às vezes gostava que fosses como-toda-a-gente... pergunto-me muitas vezes o que terei feito de errado contigo.
- quando estou contigo sinto sempre que nos expressamos em línguas diferentes, nem eu nem tu nos encontramos. tu conversas contigo e eu comigo, numa conversa paralela em que apenas ouvimos a nossa própria voz. gostava de ser mais paciente contigo, gostava de te dar o espaço que também tu precisas...
gostava que me deixasses cair, deixasses errar, deixasses ser infeliz, assim com tudo a que temos direito. às vezes, sinto que gostava de ser parte dessa igualdade, para te ver sorrir, para eu sorrir, na pacificidade dessa escolha.
desculpa mas nunca sou capaz.

terça-feira, abril 04, 2006

um café argentino


quatro da tarde, 32º C. por hoje, terminou o trabalho. está cansada e o calor amolece-a ainda mais. apanha o autocarro, que já vai cheio – na maioria pessoas vindas do trabalho, de todas as idades, todas as classes sociais. o autocarro é um transporte popular, poderia até ser agradável se não estivesse tanto calor. só pensa em chegar a casa, a ânsia faz o caminho demorar-se mais.
chega a casa. toma um duche frio e demorado. escolhe um vestido branco que faz sobressair o moreno bronzeado da pele. olha-se ao espelho – uma lágrima corre-lhe pela face. o entardecer espera-a lá fora. sai e caminha lentamente sem ver por onde vai – não tem lugar algum para ir. numa rua estreita e pouco iluminada, o cheiro do café amargo contamina o ar. entra num café mal iluminado. apenas se ouvem sussurros, e as colheres que mexem o café nas chávenas. senta-se e espera. espera por nada. espera que o tempo passe – que a vida passe e lhe diga adeus.
alguém se aproxima e senta-se sem pedir licença. é ele. deseja que se afaste mas não consegue impedi-lo de ficar. não diz nada. mas o silêncio conta uma estória triste. e ela já não está lá.
corre descalça pela rua, os sapatos de salto alto na mão, as lágrimas a secarem no rosto. o desespero de ter perdido outra vez. tudo. amanhã não lhe apetece começar de novo.
na praça uma mulher canta um tango, com uma voz hipnótica. canta apenas para si. talvez já esteja embriagada, talvez seja louca, talvez esteja morta. fica imóvel e deixa-se ferir por cada palavra, por cada momento. começa a regressar sem dar conta. quer saborear um café, um amargo café argentino, numa esplanada deserta, na companhia de um piano desafinado.
os sonhos, o amor, o futuro já não existem. quatro da manhã, 27ºC.
amanhã cantar-lhe-á o tango, aquele tango, de vestido branco e sapatos altos, de alma perdida – é assim que vai querer morrer.