domingo, fevereiro 19, 2012

só mente só

sábado. lá fora o silêncio da noite, lá fora uma noite como outra qualquer. senta-se, uma vez mais, ao computador para escrever. as pontas dos dedos deslizam pelo teclado, mais depressa que o pensamento. as palavras sempre souberam olhá-lo por dentro e por fora. condenado a escrever, condenado a saber a saber mais e mais, alguma coisa quer fazê-lo acreditar que o conhecimento é a sua única forma de sobreviver. está assim há dias, anos, não sabe já determinar quanto tempo, o tempo perdeu-se no tempo virtual, só as páginas contam. a ideia de fim.

as ideias assaltam-me, fragmentadas e dispersas. há tecidos espalhados em vasos lá fora onde as plantas um dia tentaram crescer. as flores plantadas morrerram, sobrevivem apenas ervas daninhas que se apoderam de um espaço.biscoitos. dias-de-sol. dias-de-chuva. lareira acesa. viagens em línguas incompreensíveis. memórias. sorrisos. rotinas. domingo. ideias. amanhã. futuro. o amor.

sabe que não poderia ser diferente. deixou a imaginação voar e conduzi-lo por caminhos agora tão impossíveis. chora. o momento é tão insustentável como ele próprio. pergunta-se o que o mantém ali. que teias o mantêm no caminho que queria não ter escolhido. quis ousar a diferença, a liberdade de ser ele próprio.

um dia acreditei contigo que iria ser diferente. que um projecto seria um acontecimento, que lutaríamos juntos até ao fim. estou só. a noite adensa-se e o vazio é uma espécie de sanguessuga. está frio e não sei resolver o impasse. porque desejei tanto? porque desejei um dia?

o ecrã espera por mais uma letra, um ponto, um capítulo encerrado e concluído. levanta-se e sai. sem esperança, sem palavras, sem ideias. só assim.

onda sonora: primavera – the gift

segunda-feira, maio 16, 2011

uma questão de amor

fico esperando um fim feliz
já com sorriso preparado
surpreendes-me de novo,
contador de histórias
no final
os teus lábios perguntam
porquês de mim
o meu abraço responde
que é apenas
uma questão de amor.

quarta-feira, maio 04, 2011

o desamor

tem aquele amargo na boca, aquela náusea insinuada. dentro de segundos entrará no modo caos: não saberá onde ir, não saberá como apresentar a sua face, não saberá como entoar as palavras, tornar-se-á maquinal. nada lhe poderá ser apontado. está agora num vazio apático e colossal.



prossegue através do cinzento dos prédios fugindo daquela que é a sua natureza, simples, pura, romântica, cheia de vida. o fumo sufoca-a. o ruído ensurdece-a. a língua enrola-se para a emudecer.



tenta agora resistir, vá, resiste. a época dourada e cintilante tem o seu fim, não sabias? ninguém pode viver nessa felicidadezinha insuportável. és uma farsa de vontade e de sonhos. surpreende-me como ainda te sobra uma réstia de crença, essa fé que tens de que amanhã serás. irrita-me essa tua esperança cega. quero agora que experimentes a distância, a amargura, a tristeza profunda. alimenta-te dessa revolta. enche-te de desamor. amanhã falaremos e tudo te será óbvio. finalmente saborearei a tua derrota e provarei a tua vulgaridade.


sexta-feira, março 12, 2010

ainda há barcos no rio

o sol passa pelas frestas das tábuas de madeira, da barcaça modesta que lhe foi deixada. os espaços cada vez maiores deixam ver a luz do sol no verão, enquanto ele se deixa dormir, ao sabor do calor e da preguiça. no inverno, a água entra de mansinho e não os deixa afastar da costa. tão jovem e sonhava já com os tempos d’outrora, em que o peixe enchia as redes, nessa altura o cais era outra história. fazia-se lota em certos dias cheio de gente a vender e a comprar, parecia dia de festa. e a vida lá trazia de vez em quando uma guloseima.
aprendeu a lidar o mar, como quem domina toiro enraivecido. as mãos arranham como esfregão e não desdizem as tormentas que o acometem. a vida cada vez mais dura e as redes vazias, lá lhe trazem um peixito miúdo de quando em quando.
deixa-se ficar a admirar o rio e a pensar como hoje gostava de ter sido diferente. ido à escola, essas coisas… nas ruas chamam-lhe o filósofo. filósofo de mudez trazida pela água e pelos pensamentos que nunca soube ler e escrever e agora ainda que novo está velho para essas coisas. os miúdos gritam-lhe “eeeeh, ó velho, sai daqui?”, “oo, não trabalhas?” – ele até gostava de ter tido um filho. a olinda foi-se embora, à procura doutra vida, vida que é vida é nossa não é do mar, dizia ela. logo ela que era tão bonita. gosta de fechar os olhos para lhe lembrar o rosto e o peito e as ancas redondas que gostava de puxar contra ele, sim que ele também já foi Homem…

sábado, outubro 31, 2009

dia obtuso

fiquei à espera que regressasses desse dia em que escolheste a metamorfose.
pensei que hoje te encontraria para partirmos.
à porta os teus cadernos de palavras esquizofrénicas escritas no auge dos teus delírios (nesses teus momentos únicos de criação e destruição).
dentro da casa o vazio frio de quando tudo se esvai sem que haja tempo. o nada.
no quarto do fundo estavas tu, num mutismo doloroso, de olhar mortificado, vazia como nunca te concebi.

deixei-te assim no teu silêncio e parti só.

segunda-feira, outubro 12, 2009

a cidade

é difícil a cidade. os anos passaram e a incredulidade ampliou-se até ao inimaginável. sente-se deslocado daquele mundo em que está mas por contingências das suas responsabilidades de vida adulta já não mais partilha.
os transportes públicos hoje estão mais livres, mesmo assim as pessoas insistem em encolher-se no seu canto (talvez o hábito quotidiano) e que mentalmente agradecem por não ser hora de ponta e por poderem ir sentadas e não ter de tocar nos apoios onde muito eventualmente estará uma bactéria que hipoteticamente será a causadora de uma gripe qualquer; agradecem também decerto pela fraca afluência de gente não lhes trazer o cheiro mal cuidado no final de um dia de trabalho que as faz respirar pela boca, aliás a pseudo-gripe até que vem a calhar e assim se pode usar comodamente uma máscara sobre o nariz sem levantar suspeita ao vizinho do lado. mas o espaço traz inevitavelmente a voz do mendigo (não se atreveria numa outra ocasião), vale tudo pela esmolinha, esquece de guardar o seu telemóvel na mala para que não surjam suspeitas e o copo vai vazio, e a desconfiança cresce. sai numa estação que tão bem conhece mas todas as ruas se modificaram.
os cheiros impuros e poluídos provocam-lhe ardor nos olhos e comichão no nariz. a visão turva pelas lágrimas torna-lhe difícil identificar o sítio para onde pretende ir. as pessoas apressadas, riem alto e parecem felizes. (a pressa que tem, partilha-a com a cidade, foi algo que nunca o deixou desde a sua primeira incursão pela vida citadina. instalou-se-lhe a pressa de chegar, sempre lhe falta o tempo para o que gostaria de ter feito ontem.) os divertimentos antigos pouco lhe dizem, não sabe das exposições ou dos filmes que estão no cinema, não conhece o último videoclip da banda da moda da cultura alternativa, não conhece os bares do momento, não entende os anúncios publicitários amontoados pelas paredes grafitadas e em ruínas. não entende como a vida na cidade se transformou num romance foleiro que leu há anos e que lhe pareceu ridículo e fútil.
pensando melhor procura ir para aquela cidade que encontrou há dois anos. não era mais bonita, não era menos cinzenta, talvez fosse mesmo quase igual ao que é hoje – mas ele era diferente e ele queria fixar-se apenas um momento mais naquela memória solitária onde ele teria menos dois anos de responsabilidades, menos dois anos de preocupações e angústias e mais dois anos de sonhos.

sexta-feira, maio 29, 2009

dispensário

não conseguia parar. os livros espalhados eram obsoletos. as ideias saltitavam, fervendo os pensamentos. o conjunto dos sons era um ruído estranho e indigesto – pum pum as colheres de pau e os almofarizes tlim tlim os copos e os pratos pri pri chhh as tampas dos tachos… et voilá as especialidades. o gourmet, o clássico, o moderno, a fusão ou a cousine mondiale foram suprimidas pela originalidade. depois a inovação seria impossível. depois o caminho seria esse – por entre pratos até encontrar o lugar ideal para se manter viva, onde seria apreciada pela sua singularidade.

sentou-se e arrumou todas as ideias em frascos. o sucesso, a criatividade, a inteligência, os impulsos ficaram arrumados no fundo da dispensa. Apenas ficou pairando um persistente e agradável cheiro a maçã.