sábado, agosto 26, 2006

o plural da memória exacta

tenho de te escrever hoje. registar tudo para não me iludir no futuro, de como foi. quero-te como agora foste, assim. descrever o teu sorriso, simpático, encantador, que mostra o teu dente meio partido, que te dá graça. e os teus olhos que com ele se combinam, para dizerem que sim, que estão felizes, revestindo-se de um brilho inexplicável.

quero-te escrito hoje, momento. recordar todas as palavras - sobretudo aquelas que não se disseram e se poderiam ter dito, e aquelas outras que foram ditas, sem se dar conta.

hoje, vou escrever, actos – a exactidão dos encontros. os factos na sua verdadeira ordem, na que aconteceram realmente. vou ignorar fantasias supérfluas e ilusões enganadoras. tudo será precisado.

escrevo-te agora que já não estás. e agora, apesar de já, o tempo já foi demasiado longo. o sorriso compõem-se altivo, a poeira das palavras que se guardaram e não se disseram desaparece, surgem significados absolutos para os actos, razões indiscutíveis para os encontros, os olhares foram, afinal óbvios e a ordem dos acontecimentos evidente.

amanhã, escreverei de novo. sei que porei uma vírgula para me encontrar e um ponto final para evitar a tristeza. nunca será difícil recordar se tudo escrever.

a lembrança estará sempre à minha espera, sem se importar com os olhos que levo para a contemplar.

música de cobertor

escolho o CD de sempre, na estante. encontro-o à primeira, sem hesitação. ligo a aparelhagem e espero serenamente. adivinho as primeiras notas (que pensava saber de cor). depois de tanto tempo ausente, a surpresa encontra-me distraído. deixo as músicas fluir, como se nada mais houvesse para fazer. canção após canção, a admiração vai-se entranhando. agora compreendo o significado deste tempo em que não estive. a transformação não se abandona, permanece, e também em mim se deixa ficar. os versos crescem na beleza, as melodias no poder.
escolhi-o, por hoje, mais que nunca, ser inverno. um inverno que aparece de quando em vez ,sem se esperar, que se ri dos 40º do termómetro.
procuro o cobertor que sempre acompanha aquelas notas - um abrigo que me conforte com o seu calor. ouço a minha história, desapaixonante, contada pela prisioneira desconhecida na rodela prateada e rosa. espero que me leve até depois do quarto verde. "leva-me para que eu encarne o sorriso ténue e breve, que talvez me tenha sido prometido."
a noite alcança a madrugada. a voz insiste, perguntando-me como será amanhã. quero responder, fingir certezas para ter um lugar nessa viagem.
desesperado, pelo medo que não me desabita, puxo mais o cobertor e fico imóvel. lentamente fecho os olhos e entrevejo uma janela aberta e um cobertor que dança ao som daquela tua voz, inconfundível.

terça-feira, agosto 01, 2006

a janela sobre o tejo

acorda mais cedo. o sol entra-lhe pela janela e rouba-lhe a vontade de ficar sozinho. veste qualquer coisa sem vontade. sabe que a sua casa é a rua. ou será a rua a sua casa? seja como for, não está ninguém. ninguém com quem estar.
fingindo-se noutro lugar, caminha por ali, reflectindo o círculo que nele se instalou. afinal de contas é aquele o seu lugar. sente-se a percorrer a cidade pela primeira vez. será que hoje é o dia? não tem fome, só a sede do encontro. anda sem parar, por vezes apressa o passo, quando vê uma esquina, quem sabe o que virá a seguir...
anoitece - a estrada negra leva-o até ao bar. o homem abre-lhe a porta em silêncio. entra e procura com o olhar a mesa do fundo, junto da janela, que sempre lhe deu a sensação de estar debruçada sobre o Tejo. as duas cadeiras sempre ocupadas estão à sua espera, ambas vazias. o homem do bar regista o pedido antes que diga alguma coisa. as palavras já não fazem sentido, estão gastas. senta-se e espera pelo seu habitual martini.
era um prazer encontrar a sua solidão, quando sabia poder contrariá-la. o que é imposto é habitualmente sentido como obrigação e gosta-se de se ser livre. agora a solidão personaliza-se na angústia.
o gelo vai-se consumindo. o sabor agradável da bebida fica agora misturado com o da bebida final-de-copo. até isso lhe sabe mal. lembra-se de ontem. ontem? talvez anteontem, ou talvez antes ainda. esse sabor...era sabor de palavras que lhe ocupavam o tempo.

lembro-me de ti. de saírmos a correr por caminhos diferentes. as ruas estavam sempre cheias de ti. um de nós chegava primeiro e sempre se sentia aquele ambiente desconhecido, naquela que era a nossa casa. sorria-se. o homem do bar sorria também com o despropósito. falávamos até às tantas. às vezes pedíamos café. e voltávamos a casa por caminhos diferentes. ou voltávamos à rua por casas diferentes, já não me lembro bem.
um dia não estavas, quando cheguei. nunca mais chegaste. sobre a mesa, um copo de martini meio bebido.
depois não sei.


levanta-se de repente. não paga, mas o homem do bar também não parece importar-se. corre pelo caminho que ali lhe trouxe, irreflectidamente, na esperança dúbia de regressar ao passado. o silêncio parece sentir-se confortável e mantem-se inabalável, como se fosse dono e senhor do mundo. não deixa que se ouça o ruído insuportável de uma multidão que se aglomera e cresce infinitamente.
rapidamente é engolido. o barulho ensurdecedor não deixa ouvir o que tenta gritar à rua, numa última tentativa de voltar. de voltar a ter alguém com quem perder o sentido do tempo e das palavras, de voltar à liberdade de negar a solidão com um sorriso no rosto.

tanto tempo, contigo, tantas palavras...
só não me lembro de te ter dito “gosto de ti”.