terça-feira, agosto 01, 2006

a janela sobre o tejo

acorda mais cedo. o sol entra-lhe pela janela e rouba-lhe a vontade de ficar sozinho. veste qualquer coisa sem vontade. sabe que a sua casa é a rua. ou será a rua a sua casa? seja como for, não está ninguém. ninguém com quem estar.
fingindo-se noutro lugar, caminha por ali, reflectindo o círculo que nele se instalou. afinal de contas é aquele o seu lugar. sente-se a percorrer a cidade pela primeira vez. será que hoje é o dia? não tem fome, só a sede do encontro. anda sem parar, por vezes apressa o passo, quando vê uma esquina, quem sabe o que virá a seguir...
anoitece - a estrada negra leva-o até ao bar. o homem abre-lhe a porta em silêncio. entra e procura com o olhar a mesa do fundo, junto da janela, que sempre lhe deu a sensação de estar debruçada sobre o Tejo. as duas cadeiras sempre ocupadas estão à sua espera, ambas vazias. o homem do bar regista o pedido antes que diga alguma coisa. as palavras já não fazem sentido, estão gastas. senta-se e espera pelo seu habitual martini.
era um prazer encontrar a sua solidão, quando sabia poder contrariá-la. o que é imposto é habitualmente sentido como obrigação e gosta-se de se ser livre. agora a solidão personaliza-se na angústia.
o gelo vai-se consumindo. o sabor agradável da bebida fica agora misturado com o da bebida final-de-copo. até isso lhe sabe mal. lembra-se de ontem. ontem? talvez anteontem, ou talvez antes ainda. esse sabor...era sabor de palavras que lhe ocupavam o tempo.

lembro-me de ti. de saírmos a correr por caminhos diferentes. as ruas estavam sempre cheias de ti. um de nós chegava primeiro e sempre se sentia aquele ambiente desconhecido, naquela que era a nossa casa. sorria-se. o homem do bar sorria também com o despropósito. falávamos até às tantas. às vezes pedíamos café. e voltávamos a casa por caminhos diferentes. ou voltávamos à rua por casas diferentes, já não me lembro bem.
um dia não estavas, quando cheguei. nunca mais chegaste. sobre a mesa, um copo de martini meio bebido.
depois não sei.


levanta-se de repente. não paga, mas o homem do bar também não parece importar-se. corre pelo caminho que ali lhe trouxe, irreflectidamente, na esperança dúbia de regressar ao passado. o silêncio parece sentir-se confortável e mantem-se inabalável, como se fosse dono e senhor do mundo. não deixa que se ouça o ruído insuportável de uma multidão que se aglomera e cresce infinitamente.
rapidamente é engolido. o barulho ensurdecedor não deixa ouvir o que tenta gritar à rua, numa última tentativa de voltar. de voltar a ter alguém com quem perder o sentido do tempo e das palavras, de voltar à liberdade de negar a solidão com um sorriso no rosto.

tanto tempo, contigo, tantas palavras...
só não me lembro de te ter dito “gosto de ti”.

2 comentários:

mag disse...

gosto de martini.da solidão que foi liberdade.ou que é a liberdade que se precisa

=)*um beso pa ti

Anónimo disse...

demorou... mas lá foi todo aquele líquido meio bebido. havia sede ou pouco mais para conversar. tudo demora, tudo é. há quem preferisse beber da janela toda a água desse rio secular. rapidamente só: assobiar desambiguações.