acorda mais cedo. o sol entra-lhe pela janela e rouba-lhe a vontade de ficar sozinho. veste qualquer coisa sem vontade. sabe que a sua casa é a rua. ou será a rua a sua casa? seja como for, não está ninguém. ninguém com quem estar.
fingindo-se noutro lugar, caminha por ali, reflectindo o círculo que nele se instalou. afinal de contas é aquele o seu lugar. sente-se a percorrer a cidade pela primeira vez. será que hoje é o dia? não tem fome, só a sede do encontro. anda sem parar, por vezes apressa o passo, quando vê uma esquina, quem sabe o que virá a seguir...
anoitece - a estrada negra leva-o até ao bar. o homem abre-lhe a porta em silêncio. entra e procura com o olhar a mesa do fundo, junto da janela, que sempre lhe deu a sensação de estar debruçada sobre o Tejo. as duas cadeiras sempre ocupadas estão à sua espera, ambas vazias. o homem do bar regista o pedido antes que diga alguma coisa. as palavras já não fazem sentido, estão gastas. senta-se e espera pelo seu habitual martini.
era um prazer encontrar a sua solidão, quando sabia poder contrariá-la. o que é imposto é habitualmente sentido como obrigação e gosta-se de se ser livre. agora a solidão personaliza-se na angústia.
o gelo vai-se consumindo. o sabor agradável da bebida fica agora misturado com o da bebida final-de-copo. até isso lhe sabe mal. lembra-se de ontem. ontem? talvez anteontem, ou talvez antes ainda. esse sabor...era sabor de palavras que lhe ocupavam o tempo.
lembro-me de ti. de saírmos a correr por caminhos diferentes. as ruas estavam sempre cheias de ti. um de nós chegava primeiro e sempre se sentia aquele ambiente desconhecido, naquela que era a nossa casa. sorria-se. o homem do bar sorria também com o despropósito. falávamos até às tantas. às vezes pedíamos café. e voltávamos a casa por caminhos diferentes. ou voltávamos à rua por casas diferentes, já não me lembro bem.
um dia não estavas, quando cheguei. nunca mais chegaste. sobre a mesa, um copo de martini meio bebido.
depois não sei.
levanta-se de repente. não paga, mas o homem do bar também não parece importar-se. corre pelo caminho que ali lhe trouxe, irreflectidamente, na esperança dúbia de regressar ao passado. o silêncio parece sentir-se confortável e mantem-se inabalável, como se fosse dono e senhor do mundo. não deixa que se ouça o ruído insuportável de uma multidão que se aglomera e cresce infinitamente.
rapidamente é engolido. o barulho ensurdecedor não deixa ouvir o que tenta gritar à rua, numa última tentativa de voltar. de voltar a ter alguém com quem perder o sentido do tempo e das palavras, de voltar à liberdade de negar a solidão com um sorriso no rosto.
tanto tempo, contigo, tantas palavras...
só não me lembro de te ter dito “gosto de ti”.
terça-feira, agosto 01, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
gosto de martini.da solidão que foi liberdade.ou que é a liberdade que se precisa
=)*um beso pa ti
demorou... mas lá foi todo aquele líquido meio bebido. havia sede ou pouco mais para conversar. tudo demora, tudo é. há quem preferisse beber da janela toda a água desse rio secular. rapidamente só: assobiar desambiguações.
Enviar um comentário