domingo, maio 28, 2006

saudades

ontem
escolheste a tua cara de olhos tristes
escolheste o teu sorriso afável, para nos brindar.

ontem
só tu para nos fazer rir assim
só tu para nos fazer viajar através da tua voz melódica.

ontem
entristeci-me pela distância que nos separa
entristeci-me pela proximidade da tua ausência.

ontem
recordarei na saudade que me deste daquele abraço

que te apeteceu, no dia em que nos conhecemos.

ontem
é já tempo de futuro que não terá regresso

é já tempo de saudades tuas.

simetria (uma ode à amizade)

deviam ser umas cinco da manhã, quando chegaste. nem sei porque vieste. eu não te esperava.
despes a tua camisola preta, lentamente, como se o tempo fosse para ti, infinito. observo os teus movimentos lentos, quase sedutores e perco todos os significados que inventei para as emoções e para os sentimentos.
ficas nua, à minha frente. eu só consigo sentir a perplexidade de não te conhecer. choras. porquê? é a pergunta que o meu corpo insinua. respondes com mais uma lágrima salgada e um olhar angustiado. choro por ti, por nós, não sei, dizes-me. também eu choro, com medo da solidão que se aproxima; depois pela distância que a tua nudez tenta desmentir.
agora eu…
agora dispo a minha roupa sem hesitar.
olhas-me atenta. o meu rosto índio encontra-se com o teu. os cabelos negros e compridos, as peles escuras… encontramos quase a simetria perfeita. todos os pontos dos nossos corpos coincidem, a face, os braços, as mãos, os dedos, o tronco, o sexo, as pernas, os pés, tudo.
dançamos ao som de uma música que não conheço. poderosa, demasiado brutal para ser ignorada. a sintonia parece acontecer. doem-me as pernas, e os braços, acho até que me dói a alma, mas não consigo parar, não consigo desistir do que ainda não conheço. procuro um livro, ao acaso – leio-te kafka, depois cervantes, stendhal, neruda, pessoa, auster…ficamos horas assim, submersas nas palavras.
depois tu…
abraças-me. nesse momento sou uma criança pequena órfã de amor. e tu sabes cativar-me. convenço-me de que ficarás comigo. é nisso que quero acreditar. dou-te a mão e a adormeço nesse calor de quem confia. a mão que me dás já não me fere como antigamente, devolve-me, antes, a consciência do eu que já não reconhecia em mim.

a exaustão dos dias deixa-me imóvel, como uma estátua. sem querer descubro aquela música que dançámos e que sei de cor. encontro-a no meio de milhares de pessoas que a cantam quase como se fosse um grito de guerra (e talvez seja mesmo o grito da guerra de cada um). por entre as vozes distingo a tua. vem de longe. talvez seja um eco dentro de mim, talvez sejas mesmo tu que estás por ali. recordo-me daquele dia. as imagens sucedem-se rápidas e impiedosas. alguém no palco se mexe, com gestos amplos e pacientes, como os teus naquele dia. choro. sorrio. sei que foi nas tuas lágrimas que um dia encontrei a minha casa.


onda sonora: tool (live in SBSR, 26maio2006) - stinkfist

domingo, maio 14, 2006

aniversário

no dia do meu aniversário,
o espelho quebrado ao fundo do corredor, ausente da magia antiga, mostrar-me-á a cara de menina que nunca me abandonou. a infância já perdida há tanto tempo não voltará mais.
no dia do meu aniversário,
é apenas mais óbvio que há poemas que têm razão - hoje apenas duro e somam-se-me dias. amanhã, terá passado mais um dia em me senti vazia de mim mesmo. mais um dia em procurei vestir uma pele que nunca me serviu - o vestido preto está cada vez mais gasto.
no dia do meu aniversário,
sei apenas que perdi um dia em que poderia ter vivido. nada mais aconteceu. e que diferença fez? a mim, nenhuma, aos outros, nenhuma também. nunca senti, não me senti nunca. nunca alcancei o que um dia sonhei. hoje os sonhos já não me assaltam e ao menos consigo respirar.
no dia do meu aniversário,
quero estar sozinha. quero perder assim sozinha. quero esperar pelo nada que sei que chegará em breve.
no dia do meu aniversário,
todos se vestiram de negro. para me sorrir (talvez para me dizerem adeus, quem sabe?).

permaneço de pé, de olhos fechados (talvez ainda procurando qualquer coisa que me resista), espero pelo meu próximo aniversário, a que provavelmente já não assistirei.

onda poética: aniversário - álvaro de campos

quarta-feira, maio 10, 2006

olhos

passas por nós sem nos ver. como se não existissemos. talvez não o devessemos fazer, nem sequer tentar.
as flores amarelas que se vêem através das grades da janela, da sala, são de uma beleza serena, que não dói, mas que também não faz sorrir, porque não têm amor suficiente dar.

onde é o teu refúgio? porque não choras? de que tens medo?

chamam-te. e permaneces imóvel (terás ouvido?), de olhos tristes. tão tristes. que doí por dentro, que queimam como ácido, que petrificam. que levam todos na tua tristeza. desarmados.

deixas-me sorrir e dar-te a mão?

domingo, maio 07, 2006

origens

o característico desenho de Keith Haring lembram-lhe sempre aquele bloco de capa roxa e o postal verde que ela lhe ofereceu nos anos. há tanto tempo. hoje voltou a lembrar-se. o envelope vermelho (seria laranja?) e um fundo branco com o traçado a preto fê-la parar uns momentos antes de abrir o misterioso postal. lá dentro um cartão azul leva-a ao espanto. e umas palavras naquela letra que conhece tão bem. a curiosidade sempre foi o seu fraco. lê uma e outra vez, e outra. naquele momento foi feliz. pela tentativa. pela memória dos dias passados. pelos dias perdidos. pelo tempo recuperado. pelo gesto. pelo presente.
não está certa se alcançará a terra-mãe, mas decerto que está mais próxima. sorri. também de orgulho e de admiração.
daí a alguns meses, no meio de tanta vozes, duas vão querer cantar em uníssono. e regressar a si.

a ti, emi.

o grande irmão

a cidade está deserta. o silêncio absorve qualquer som que começa a surgir. tudo está aparentemente calmo.
regressa a casa. abre a porta tentando evitar que alguém repare.
acende a televisão, o ecrã mantém-se desligado. experimenta o rádio, também este permance calado. senta-se no sofá e desfolha uma revista mas não se consegue concentrar. telefona aos amigos e o atendedor é o único a atender as chamadas.
vagueia pela casa, sem sentido. começa a ficar nervoso. precisa de beber qualquer coisa. a tensão paira no ar e aquela sensação não desaparece. vai até à cozinha. em cima do balcão estão duas facas (não se lembra de as ter deixado ali). olha de novo, e vê uma mancha acastanhada. aproxima-se - não há dúvida, é sangue. sente-se desfalecer. fecha os olhos e abre-os lentamente. o balcão está, afinal, imaculado.
já não aguenta mais. não sabe se estará a ficar louco. apressa-se a sair de novo. e tudo está como antes. caminha com passos largos, começa a correr pois sabe que alguém o persegue, de certeza que está a ser observado.
à sua frente desenha-se um olho gigante que o engole.