quarta-feira, setembro 13, 2006

o lugar dos ciprestes

as pessoas de semblante vestido de preto acabam por tingir as suas roupas de tonalidades semelhantes. o cortejo lento até aos ciprestes traz a incerteza: o tempo parou? ou estamos perante um compasso mudo?, uma pausa maior que semibreve?
chove. o cenário lembra um filme americano.
o silêncio não se impõe; é, antes, inevitavelmente interrompido por palavras vazias ou religiosas, nenhuma delas com sentido. naquela casa, o silêncio trazer-nos-ia decerto as lembranças do passado feliz. saberíamos sorrir e não lamentar. saberíamos apreciar e ser capazes de viver amanhã. os rostos choram, as bocas falam, numa tentativa de preencher as acções e os momentos que não aconteceram, de calar a voz interior que sussura que, hoje é já demasiado tarde para as recordações, impossibilitadas de se construírem depois.
é uma farsa, um teatro, talvez possa mesmo ser um exorcismo da culpa incómoda, que se instala e que cresce com o tempo (e a que se atribuí o nome de saudade, erradamente, para se prosseguir descansado).

a etapa dos ciprestes haveria de chegar natural e necessária como sempre, conferindo um sentido ou um fio condutor, para ti e para nós. Pergunto-me se este será o último capítulo ou apenas mais um entre tantos. Qualquer das duas hipóteses me conforta.
desta vez, nem sequer me interessa discutir as causas. nem sequer me interessa que pensem que estou louca por não desejar uma continuidade (ainda que triste e desesperada) mantida por uma medicina avançada, em lugar de uma paz merecida e serena (ainda que dolorosa para todos).
ouço as palavras do sacerdote, de que discordo na sua maioria, muito distante dali. estou ocupada a pensar em colares de pinhões e ameixas saborosas que apanhava quando tinha quatro anos, “como será possível viajar até tão longe?”. dou por mim a acenar sem querer quando concordo com aquela vontade de ser melhor hoje já. será que alguém o ouviu? ou o eco é um resultado do medo de não parecer bem?
os olhares indiscretos condenam-me a ser pedra: dura, fria e intacta. será que ninguém vê as marcas da erosão? será que não sentem o calor do meu corpo, que nem a chuva e o vento fazem desaparecer? contudo é na pedra que todos se apoiam, ignorando a superfície em transformação. alguém reconhece alguma vida por ali, um alguém singular e demasiado perspicaz.
às vezes dói-me esta diferença, por ser difícil, mas já não consigo fingir o que não sinto e também já não me importa.

choveu o suficiente, por mim. só senti falta daquela graça que dizias quando me vinhas visitar. essa ninguém quis recordar.
um destes dias, sei que vou visitar o lugar do cipreste, talvez uma vez por ano, como manda uma tradição qualquer e nem vais reparar. onde quer que seja a próxima casa, mesmo que seja infinitamente longe, a luz vai apenas acender em ti, quando eu me lembrar das ameixas e dos pinhões.

não queria estar ali e hoje teve de ser.

2 comentários:

Anónimo disse...

Teremos todos de estar lá, um dia.

Votos Luminosos de Paz

ji*

Anónimo disse...

não poderia descrever melhor esse momento...tens o dom da palavra miúda!
luv ya*