terça-feira, outubro 24, 2006

amor-te II

vejo-te chegar. esperam-te as paredes brancas, despidas e frias de um quarto igual a todos os outros. expressão indiferente. não sei se em paz ou aterrorizado. acho que nunca o poderei dizer.
procuro recordar o dia em que chegaste. quero lembrar-me… falei um pouco contigo, expliquei-te o habitual, as rotinas e sorri-te, um sorriso aberto… ainda hoje não compreendo porque o fiz. o sorriso não me confortaria, mas dei-to à mesma sem que mo pedisses. tinhas apenas 53 anos, talvez 41 ou 32, quem sabe? é difícil recordar idade, sobretudo quando se sabe apenas, que é a última.
ficaste no quarto do fundo, o mais sossegado. de manhã podias ouvir os pássaros e contemplar o nascer do sol. parecia agradável. todos te tratavam “bem”. tu nunca dizias nada. nunca. dizia-se que tinhas emudecido, que esse mutismo se devia à revolta interior que vivia em ti.
visitava-te muitas vezes, mesmo quando não era eu responsável pelo teu cuidado. deixei de te sorrir e falar também. toleravas-me. acho que não me mandavas embora para não me magoares. tu sabias bem que o brilho dos teus olhos, que se mantinha aceso, me fazia gostar de ti, muito. eu sabia que não querias que sofresse.
chorei no dia em que partiste, não sei para onde foste. nessa manhã, estendeste-me a tua mão esguia e magra. eu dei-te a minha e ali fiquei até que me disseste “obrigado”.
os teus olhos estavam já fechados quando cheguei, à tarde. estava um fotógrafo a procurar-te uma expressão da tua dignidade, disse-me ele. e eu fiquei mais um momento, em silêncio como tu. não consegui abandonar-te, assim.

não conheci a tua angústia o que ainda hoje me perturba.
entro agora no teu quarto e sorrio, recordando a tua mão fria que apertou a minha naquele dia: de brilho nos olhos e de alma perdida.


(depois de "amor-te")

1 comentário:

Mário disse...

E estás deitada sobre o forro do caixão... Vejo-te e lembro-me de ti. Tentei trazer as imagens antigas que, sem querer, fui apagando enquanto cuidava de ti, mas é a tua figura fraca, pálida e meia tombada para o lado esquerdo que mais depressa surge. Não sei como tudo se passou, como o viveste, mas queria tanto ter sabido estar lá quando partiste. A ideia de partida, no entanto, conforta-me. Confortam-me, hoje, as imagens que soube ir buscar aos dias de mingau e de escolher o arroz, aos dias de brincar com os botões da tua caixa de costura... Não quero a tua imagem morta. Quero que seja essa a expressão da tua dignidade!...

Afinal, nem só de imagens se chora...

Beijo...*