quinta-feira, dezembro 28, 2006

o corpo

deixa-se ficar sobre a cama. o corpo nu e frio, enrolado sobre si mesmo. os olhos fechados. as lágrimas inundam-lhe o rosto. está assim há muito tempo, impossível precisar desde quando. a janela entreaberta deixa entrar o vento quase glacial. um corpo quase morto. à sua volta tudo está impecavelmente arrumado. nada está fora do sítio. até os lençóis da cama estão esticados, como se o corpo ali tivesse sido depositado.
é um quadro surrealista. uma fotografia contemporânea, uma coisa moderna.
o corpo imóvel, cada vez mais se mistura com a brancura do cenário. lá fora começa a nevar.

chega mais tarde que o costume. pensou ter perdido a chave. e não estava preparado para a neve. sem saber porque sentia-se impedido de chegar. e sabia ser preciso chegar quanto antes. não consegue entender a diferença de hoje e de todos os outros dias. chama. ninguém vem. a solidão entranha-se sem se dar conta. percorre a casa e deixa a angustia instalar-se. pára à porta do quarto e entra devagar. como se este fosse o ultimo momento. o ultimo de todos. o corpo sobre a cama parece-lhe de um azul celeste: impossível. sem se conseguir apressar, aproxima-se. lentamente toca-lhe os olhos e limpa s lágrimas ainda molhadas. beija-lhe a face salgada. pensa ver um sorriso, mas talvez tenha sido o medo.
levanta-se para fechar a janela aberta. recuperando a agilidade dos movimentos – despe-se, deita-se ao lado do corpo adormecido e abraça-o, como se o calor do seu corpo fosse a única arma contra o fim.

o calor do outro: a inquietação, o medo da perda, da dor...fazem aparecer um sorriso tímido. um beijo e outro. palavras sussurradas pedem-lhe que fique. pedem que sorria. um beijo e mais outro. e o abraço que permanece. os murmúrios são agora mais audíveis. prometem-lhe ajuda para sair da tristeza para que se evadiu. o corpo começa a ficar morno e menos adormecido.
sem certeza entreabre os olhos, com dificuldade. devolve o sorriso, um sorriso pequenino. um beijo. uma lágrima mais. promete ficar pelo menos até amanhã. e o abraço que permanece.


onda sonora: song for a blue hearth - the gift

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