deixa-se ficar sobre a cama. o corpo nu e frio, enrolado sobre si mesmo. os olhos fechados. as lágrimas inundam-lhe o rosto. está assim há muito tempo, impossível precisar desde quando. a janela entreaberta deixa entrar o vento quase glacial. um corpo quase morto. à sua volta tudo está impecavelmente arrumado. nada está fora do sítio. até os lençóis da cama estão esticados, como se o corpo ali tivesse sido depositado.
é um quadro surrealista. uma fotografia contemporânea, uma coisa moderna.
o corpo imóvel, cada vez mais se mistura com a brancura do cenário. lá fora começa a nevar.
chega mais tarde que o costume. pensou ter perdido a chave. e não estava preparado para a neve. sem saber porque sentia-se impedido de chegar. e sabia ser preciso chegar quanto antes. não consegue entender a diferença de hoje e de todos os outros dias. chama. ninguém vem. a solidão entranha-se sem se dar conta. percorre a casa e deixa a angustia instalar-se. pára à porta do quarto e entra devagar. como se este fosse o ultimo momento. o ultimo de todos. o corpo sobre a cama parece-lhe de um azul celeste: impossível. sem se conseguir apressar, aproxima-se. lentamente toca-lhe os olhos e limpa s lágrimas ainda molhadas. beija-lhe a face salgada. pensa ver um sorriso, mas talvez tenha sido o medo.
levanta-se para fechar a janela aberta. recuperando a agilidade dos movimentos – despe-se, deita-se ao lado do corpo adormecido e abraça-o, como se o calor do seu corpo fosse a única arma contra o fim.
o calor do outro: a inquietação, o medo da perda, da dor...fazem aparecer um sorriso tímido. um beijo e outro. palavras sussurradas pedem-lhe que fique. pedem que sorria. um beijo e mais outro. e o abraço que permanece. os murmúrios são agora mais audíveis. prometem-lhe ajuda para sair da tristeza para que se evadiu. o corpo começa a ficar morno e menos adormecido.
sem certeza entreabre os olhos, com dificuldade. devolve o sorriso, um sorriso pequenino. um beijo. uma lágrima mais. promete ficar pelo menos até amanhã. e o abraço que permanece.
onda sonora: song for a blue hearth - the gift
quinta-feira, dezembro 28, 2006
domingo, dezembro 03, 2006
o astrónomo
morava numas águas-furtadas, num prédio velho numa zona antiga, já nos arredores da grande cidade. aborrecia-o a azáfama da cidade. todos os dias pensava em mudar-se para o interior, um lugar mais silencioso como lhe convinha.
lembrava-se vagamente de se sentir em casa. por vezes apareciam-lhe no pensamento palavras a que não conseguia atribuir significado, mas que lhe aqueciam o coração, lembrava-se de adormecer a ouvi-las... talvez fossem a sua língua mãe, uma língua desaparecida, talvez mesmo já morta. talvez não.
onde estariam os seus irmãos? onde estariam aqueles que falavam a sua língua? lembrava-se de sentir qualquer coisa especial quando olhava uma flor ou um pequeno pássaro a aprender a voar! na cidade nem havia vida para além dos homens.
o anoitecer era sempre um privilégio. no seu pequeno terraço, montava o telescópio, cuidadosamente guardado. procurava estrelas quase ao acaso. gostava de as encontrar, de se surpreender com as pequenas viagens estelares. sorria timidamente, não duraria até amanhã. e quem se iria importar com um astrónomo que procurava a beleza das coisas pequeninas? aconchegava-se com o cobertor já de estrelas apagadas e deixava-se ficar a chorar baixinho. procurava em si o sentimento especial que o encantava quando era criança (se alguma vez o fora), quando abraçava árvores, quando abraçava…não conseguia lembrar-se…
restava-lhe adormecer sonhando com outras galáxias, fora da cidade coberta de fuligem – decerto que numa delas estariam os seus irmãos. e o seu telescópio iria encontrá-los.
lembrava-se vagamente de se sentir em casa. por vezes apareciam-lhe no pensamento palavras a que não conseguia atribuir significado, mas que lhe aqueciam o coração, lembrava-se de adormecer a ouvi-las... talvez fossem a sua língua mãe, uma língua desaparecida, talvez mesmo já morta. talvez não.
onde estariam os seus irmãos? onde estariam aqueles que falavam a sua língua? lembrava-se de sentir qualquer coisa especial quando olhava uma flor ou um pequeno pássaro a aprender a voar! na cidade nem havia vida para além dos homens.
o anoitecer era sempre um privilégio. no seu pequeno terraço, montava o telescópio, cuidadosamente guardado. procurava estrelas quase ao acaso. gostava de as encontrar, de se surpreender com as pequenas viagens estelares. sorria timidamente, não duraria até amanhã. e quem se iria importar com um astrónomo que procurava a beleza das coisas pequeninas? aconchegava-se com o cobertor já de estrelas apagadas e deixava-se ficar a chorar baixinho. procurava em si o sentimento especial que o encantava quando era criança (se alguma vez o fora), quando abraçava árvores, quando abraçava…não conseguia lembrar-se…
restava-lhe adormecer sonhando com outras galáxias, fora da cidade coberta de fuligem – decerto que numa delas estariam os seus irmãos. e o seu telescópio iria encontrá-los.
fairy, a caixa de música
era laranja. nunca se havia visto nenhuma assim. conservava o seu brilho, apesar dos anos. pretendia alcançar a perenidade tal pedra filosofal. mas era uma mera caixa de madeira, sem qualquer adorno que a distinguisse de uma vulgar caixa de madeira. apenas a sua cor se insinuava. na tampa, em letras minúsculas, podia ler-se “fairy”, palavra sem qualquer significado.
lá dentro não habitava uma bailarina, mas sim um pequeno catavento – rodopiante, que girava ao som da música. se olhássemos com atenção conseguíamos ver um mundo louco e desordenado, como se uma dimensão paralela existisse simultaneamente. aterrador e fascinante.
poderia pensar-se que esta caixa era muito cobiçada…quem não desejaria ir até à ampliação máxima da sua imaginação? porém a pequena caixa jaz caída num sótão poeirento. nunca foi descoberto o mistério da passagem secreta que encerra. conto-vos agora: basta abrir a caixa, fechar os olhos e encontrar um tempo para se poder acreditar na fada. ela virá ao nosso encontro para nos levar, mas só se estivermos dispostos a apreciar a viagem. só se pretendermos abdicar do supérfluo visível para podermos descer às obscuras ou brilhantes profundezas, daquele que se afigura o nosso abismo.
onda sonora: colleen – the golden morning breaks
lá dentro não habitava uma bailarina, mas sim um pequeno catavento – rodopiante, que girava ao som da música. se olhássemos com atenção conseguíamos ver um mundo louco e desordenado, como se uma dimensão paralela existisse simultaneamente. aterrador e fascinante.
poderia pensar-se que esta caixa era muito cobiçada…quem não desejaria ir até à ampliação máxima da sua imaginação? porém a pequena caixa jaz caída num sótão poeirento. nunca foi descoberto o mistério da passagem secreta que encerra. conto-vos agora: basta abrir a caixa, fechar os olhos e encontrar um tempo para se poder acreditar na fada. ela virá ao nosso encontro para nos levar, mas só se estivermos dispostos a apreciar a viagem. só se pretendermos abdicar do supérfluo visível para podermos descer às obscuras ou brilhantes profundezas, daquele que se afigura o nosso abismo.
onda sonora: colleen – the golden morning breaks
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