quinta-feira, dezembro 28, 2006

o corpo

deixa-se ficar sobre a cama. o corpo nu e frio, enrolado sobre si mesmo. os olhos fechados. as lágrimas inundam-lhe o rosto. está assim há muito tempo, impossível precisar desde quando. a janela entreaberta deixa entrar o vento quase glacial. um corpo quase morto. à sua volta tudo está impecavelmente arrumado. nada está fora do sítio. até os lençóis da cama estão esticados, como se o corpo ali tivesse sido depositado.
é um quadro surrealista. uma fotografia contemporânea, uma coisa moderna.
o corpo imóvel, cada vez mais se mistura com a brancura do cenário. lá fora começa a nevar.

chega mais tarde que o costume. pensou ter perdido a chave. e não estava preparado para a neve. sem saber porque sentia-se impedido de chegar. e sabia ser preciso chegar quanto antes. não consegue entender a diferença de hoje e de todos os outros dias. chama. ninguém vem. a solidão entranha-se sem se dar conta. percorre a casa e deixa a angustia instalar-se. pára à porta do quarto e entra devagar. como se este fosse o ultimo momento. o ultimo de todos. o corpo sobre a cama parece-lhe de um azul celeste: impossível. sem se conseguir apressar, aproxima-se. lentamente toca-lhe os olhos e limpa s lágrimas ainda molhadas. beija-lhe a face salgada. pensa ver um sorriso, mas talvez tenha sido o medo.
levanta-se para fechar a janela aberta. recuperando a agilidade dos movimentos – despe-se, deita-se ao lado do corpo adormecido e abraça-o, como se o calor do seu corpo fosse a única arma contra o fim.

o calor do outro: a inquietação, o medo da perda, da dor...fazem aparecer um sorriso tímido. um beijo e outro. palavras sussurradas pedem-lhe que fique. pedem que sorria. um beijo e mais outro. e o abraço que permanece. os murmúrios são agora mais audíveis. prometem-lhe ajuda para sair da tristeza para que se evadiu. o corpo começa a ficar morno e menos adormecido.
sem certeza entreabre os olhos, com dificuldade. devolve o sorriso, um sorriso pequenino. um beijo. uma lágrima mais. promete ficar pelo menos até amanhã. e o abraço que permanece.


onda sonora: song for a blue hearth - the gift

domingo, dezembro 03, 2006

o astrónomo

morava numas águas-furtadas, num prédio velho numa zona antiga, já nos arredores da grande cidade. aborrecia-o a azáfama da cidade. todos os dias pensava em mudar-se para o interior, um lugar mais silencioso como lhe convinha.
lembrava-se vagamente de se sentir em casa. por vezes apareciam-lhe no pensamento palavras a que não conseguia atribuir significado, mas que lhe aqueciam o coração, lembrava-se de adormecer a ouvi-las... talvez fossem a sua língua mãe, uma língua desaparecida, talvez mesmo já morta. talvez não.
onde estariam os seus irmãos? onde estariam aqueles que falavam a sua língua? lembrava-se de sentir qualquer coisa especial quando olhava uma flor ou um pequeno pássaro a aprender a voar! na cidade nem havia vida para além dos homens.
o anoitecer era sempre um privilégio. no seu pequeno terraço, montava o telescópio, cuidadosamente guardado. procurava estrelas quase ao acaso. gostava de as encontrar, de se surpreender com as pequenas viagens estelares. sorria timidamente, não duraria até amanhã. e quem se iria importar com um astrónomo que procurava a beleza das coisas pequeninas? aconchegava-se com o cobertor já de estrelas apagadas e deixava-se ficar a chorar baixinho. procurava em si o sentimento especial que o encantava quando era criança (se alguma vez o fora), quando abraçava árvores, quando abraçava…não conseguia lembrar-se…
restava-lhe adormecer sonhando com outras galáxias, fora da cidade coberta de fuligem – decerto que numa delas estariam os seus irmãos. e o seu telescópio iria encontrá-los.

fairy, a caixa de música

era laranja. nunca se havia visto nenhuma assim. conservava o seu brilho, apesar dos anos. pretendia alcançar a perenidade tal pedra filosofal. mas era uma mera caixa de madeira, sem qualquer adorno que a distinguisse de uma vulgar caixa de madeira. apenas a sua cor se insinuava. na tampa, em letras minúsculas, podia ler-se “fairy”, palavra sem qualquer significado.
lá dentro não habitava uma bailarina, mas sim um pequeno catavento – rodopiante, que girava ao som da música. se olhássemos com atenção conseguíamos ver um mundo louco e desordenado, como se uma dimensão paralela existisse simultaneamente. aterrador e fascinante.
poderia pensar-se que esta caixa era muito cobiçada…quem não desejaria ir até à ampliação máxima da sua imaginação? porém a pequena caixa jaz caída num sótão poeirento. nunca foi descoberto o mistério da passagem secreta que encerra. conto-vos agora: basta abrir a caixa, fechar os olhos e encontrar um tempo para se poder acreditar na fada. ela virá ao nosso encontro para nos levar, mas só se estivermos dispostos a apreciar a viagem. só se pretendermos abdicar do supérfluo visível para podermos descer às obscuras ou brilhantes profundezas, daquele que se afigura o nosso abismo.

onda sonora: colleen – the golden morning breaks

terça-feira, outubro 24, 2006

amor-te II

vejo-te chegar. esperam-te as paredes brancas, despidas e frias de um quarto igual a todos os outros. expressão indiferente. não sei se em paz ou aterrorizado. acho que nunca o poderei dizer.
procuro recordar o dia em que chegaste. quero lembrar-me… falei um pouco contigo, expliquei-te o habitual, as rotinas e sorri-te, um sorriso aberto… ainda hoje não compreendo porque o fiz. o sorriso não me confortaria, mas dei-to à mesma sem que mo pedisses. tinhas apenas 53 anos, talvez 41 ou 32, quem sabe? é difícil recordar idade, sobretudo quando se sabe apenas, que é a última.
ficaste no quarto do fundo, o mais sossegado. de manhã podias ouvir os pássaros e contemplar o nascer do sol. parecia agradável. todos te tratavam “bem”. tu nunca dizias nada. nunca. dizia-se que tinhas emudecido, que esse mutismo se devia à revolta interior que vivia em ti.
visitava-te muitas vezes, mesmo quando não era eu responsável pelo teu cuidado. deixei de te sorrir e falar também. toleravas-me. acho que não me mandavas embora para não me magoares. tu sabias bem que o brilho dos teus olhos, que se mantinha aceso, me fazia gostar de ti, muito. eu sabia que não querias que sofresse.
chorei no dia em que partiste, não sei para onde foste. nessa manhã, estendeste-me a tua mão esguia e magra. eu dei-te a minha e ali fiquei até que me disseste “obrigado”.
os teus olhos estavam já fechados quando cheguei, à tarde. estava um fotógrafo a procurar-te uma expressão da tua dignidade, disse-me ele. e eu fiquei mais um momento, em silêncio como tu. não consegui abandonar-te, assim.

não conheci a tua angústia o que ainda hoje me perturba.
entro agora no teu quarto e sorrio, recordando a tua mão fria que apertou a minha naquele dia: de brilho nos olhos e de alma perdida.


(depois de "amor-te")

amor-te I

de que cor são os teus olhos
antes negros?
de que sal são as tuas lágrimas
que vão secando?
de que luz nascem os cabelos
que ainda te iluminam?
de que morte falas nesse amor
que me contaste?
de que amor se conforta o teu coração
que já não bate?
é de amor-te que vem um sopro
para te levar.


(depois de "amor-te")

quinta-feira, setembro 28, 2006

dazibao*

o tempo está a esgotar-se, apesar de ser cada vez maior. todos os dias lhe apetece querer correr até à parede azul, onde já se encontram outros artigos, outros pequenos fragmentos de vidas diferentes e distantes no entanto, procura conter-se.

diz-se daquela parede, que é pública, mas a privacidade parece querer roubar-lhe a designação e afirma-se num crescendo imperturbável. a censura procura diariamente o autor dos delitos, traduzidos em palavras inocentes, ou não. os papéis são também azuis, vendem-se correntemente em qualquer papelaria; melhor, em todos os estabelecimentos comerciais de todos os lugares. soube esconder-se, apenas o suficiente para não ser descoberto.
todos os excertos publicados são apátridas: não vêm da terra da certeza, nem da da incerteza, não vêm da terra do concreto nem da do abstracto, nem da terra do imaginário nem da da realidade, ao mesmo tempo, parecem chegar um pouco de cada uma delas.
de quando em vez nascem perguntas, outras vezes afirmações e nascem respostas e diálogos a partir de tanta coisa e de coisa nenhuma.
alguém escreve sobre catavento, a censura desconfia…contudo, catavento é qualquer coisa em via de extinção (já nem se sabe bem se é um objecto ou um animal, uma cidade ou um produto químico), na era da informação sempre segura e da segurança firme na escolha (?) de caminhos - o mesmo seria falar de ninguém.

a ele apetece-lhe escrever e escrever-se. não se livra daquela conotação autobiográfica que lhe define o estilo das prosas e das poesias. hoje, 25 de setembro, não irá até lá, à parede, como a vontade lhe manda, deixar-se-á ficar inerte. talvez mais tarde gostasse de escrever para comemorar. mas comemorar as tristezas e as alegrias de si mesmo, comemorar a indiferença e o desinteresse? mais uma vez não é feliz a encontrar justificações plausíveis e coerentes. pensa nunca se ter arriscado por si. os polícias andam por aí e hoje a censura atribui penas pesadas aos infractores. escreveu esperando a discussão, esperando a crítica, esperando algum amor pelas palavras e as emoções e sentimentos de desconhecidos. esperou encontrar novas perspectivas e novos trilhos. sonhou até com discussões acesas, fóruns abertos e muita partilha, mas não. começa acreditar na ilusão.
agora pensa se valerá a pena? não será tudo isto um exercício egocêntrico de se mostrar? não será tudo isto mais um capricho, uma vaidade dos seus idealismos? mais uma chamada de atenção, o acender uma luz sobre a sua existência?
o tempo é cada vez maior mas esgota-se célere. não resiste e corre até à parede. cola outro escrito de si. amanhã será diferente: talvez a censura o apanhe ou as forças que o animam, essas esperanças de que o sonho se realize se sumam.

a parede azul está cada vez mais vazia e em breve será derrubada.


*dazibao é um jornal de parede, tendo sido muito utilizado como instrumento de agitação ideológica no período de revolução maoísta.

quarta-feira, setembro 13, 2006

o lugar dos ciprestes

as pessoas de semblante vestido de preto acabam por tingir as suas roupas de tonalidades semelhantes. o cortejo lento até aos ciprestes traz a incerteza: o tempo parou? ou estamos perante um compasso mudo?, uma pausa maior que semibreve?
chove. o cenário lembra um filme americano.
o silêncio não se impõe; é, antes, inevitavelmente interrompido por palavras vazias ou religiosas, nenhuma delas com sentido. naquela casa, o silêncio trazer-nos-ia decerto as lembranças do passado feliz. saberíamos sorrir e não lamentar. saberíamos apreciar e ser capazes de viver amanhã. os rostos choram, as bocas falam, numa tentativa de preencher as acções e os momentos que não aconteceram, de calar a voz interior que sussura que, hoje é já demasiado tarde para as recordações, impossibilitadas de se construírem depois.
é uma farsa, um teatro, talvez possa mesmo ser um exorcismo da culpa incómoda, que se instala e que cresce com o tempo (e a que se atribuí o nome de saudade, erradamente, para se prosseguir descansado).

a etapa dos ciprestes haveria de chegar natural e necessária como sempre, conferindo um sentido ou um fio condutor, para ti e para nós. Pergunto-me se este será o último capítulo ou apenas mais um entre tantos. Qualquer das duas hipóteses me conforta.
desta vez, nem sequer me interessa discutir as causas. nem sequer me interessa que pensem que estou louca por não desejar uma continuidade (ainda que triste e desesperada) mantida por uma medicina avançada, em lugar de uma paz merecida e serena (ainda que dolorosa para todos).
ouço as palavras do sacerdote, de que discordo na sua maioria, muito distante dali. estou ocupada a pensar em colares de pinhões e ameixas saborosas que apanhava quando tinha quatro anos, “como será possível viajar até tão longe?”. dou por mim a acenar sem querer quando concordo com aquela vontade de ser melhor hoje já. será que alguém o ouviu? ou o eco é um resultado do medo de não parecer bem?
os olhares indiscretos condenam-me a ser pedra: dura, fria e intacta. será que ninguém vê as marcas da erosão? será que não sentem o calor do meu corpo, que nem a chuva e o vento fazem desaparecer? contudo é na pedra que todos se apoiam, ignorando a superfície em transformação. alguém reconhece alguma vida por ali, um alguém singular e demasiado perspicaz.
às vezes dói-me esta diferença, por ser difícil, mas já não consigo fingir o que não sinto e também já não me importa.

choveu o suficiente, por mim. só senti falta daquela graça que dizias quando me vinhas visitar. essa ninguém quis recordar.
um destes dias, sei que vou visitar o lugar do cipreste, talvez uma vez por ano, como manda uma tradição qualquer e nem vais reparar. onde quer que seja a próxima casa, mesmo que seja infinitamente longe, a luz vai apenas acender em ti, quando eu me lembrar das ameixas e dos pinhões.

não queria estar ali e hoje teve de ser.

sábado, setembro 02, 2006

as árvores morrem de pé

castanho claro é a cor da terra que rodeia e acentua o contraste dos paus nus e negros, que vejo da janela do carro em andamento.
ali, à distância de uns pequenos passos, estão os corpos de quem já foi gente. não se pára, não se abranda, nada. não há tempo sequer para contemplar. e talvez seja melhor assim. não se sai impune desse contacto. não se permanece incólume ao confronto com o fim.
o espectáculo encena-se amargo. os troncos gigantes assumem a sua posição póstuma. altivos, desprezam a devastação a que foram condenados. abraço-os com o olhar, estupidamente, pensando poder amparar qualquer coisa. rapidamente me rendo à pequenez perante aqueles que, impossibilitados de se refugiarem noutro local, se deixam ficar ao sabor do vento, morrendo de pé, ignorando os olhares indiferentes e a destruição imerecida.

sábado, agosto 26, 2006

o plural da memória exacta

tenho de te escrever hoje. registar tudo para não me iludir no futuro, de como foi. quero-te como agora foste, assim. descrever o teu sorriso, simpático, encantador, que mostra o teu dente meio partido, que te dá graça. e os teus olhos que com ele se combinam, para dizerem que sim, que estão felizes, revestindo-se de um brilho inexplicável.

quero-te escrito hoje, momento. recordar todas as palavras - sobretudo aquelas que não se disseram e se poderiam ter dito, e aquelas outras que foram ditas, sem se dar conta.

hoje, vou escrever, actos – a exactidão dos encontros. os factos na sua verdadeira ordem, na que aconteceram realmente. vou ignorar fantasias supérfluas e ilusões enganadoras. tudo será precisado.

escrevo-te agora que já não estás. e agora, apesar de já, o tempo já foi demasiado longo. o sorriso compõem-se altivo, a poeira das palavras que se guardaram e não se disseram desaparece, surgem significados absolutos para os actos, razões indiscutíveis para os encontros, os olhares foram, afinal óbvios e a ordem dos acontecimentos evidente.

amanhã, escreverei de novo. sei que porei uma vírgula para me encontrar e um ponto final para evitar a tristeza. nunca será difícil recordar se tudo escrever.

a lembrança estará sempre à minha espera, sem se importar com os olhos que levo para a contemplar.

música de cobertor

escolho o CD de sempre, na estante. encontro-o à primeira, sem hesitação. ligo a aparelhagem e espero serenamente. adivinho as primeiras notas (que pensava saber de cor). depois de tanto tempo ausente, a surpresa encontra-me distraído. deixo as músicas fluir, como se nada mais houvesse para fazer. canção após canção, a admiração vai-se entranhando. agora compreendo o significado deste tempo em que não estive. a transformação não se abandona, permanece, e também em mim se deixa ficar. os versos crescem na beleza, as melodias no poder.
escolhi-o, por hoje, mais que nunca, ser inverno. um inverno que aparece de quando em vez ,sem se esperar, que se ri dos 40º do termómetro.
procuro o cobertor que sempre acompanha aquelas notas - um abrigo que me conforte com o seu calor. ouço a minha história, desapaixonante, contada pela prisioneira desconhecida na rodela prateada e rosa. espero que me leve até depois do quarto verde. "leva-me para que eu encarne o sorriso ténue e breve, que talvez me tenha sido prometido."
a noite alcança a madrugada. a voz insiste, perguntando-me como será amanhã. quero responder, fingir certezas para ter um lugar nessa viagem.
desesperado, pelo medo que não me desabita, puxo mais o cobertor e fico imóvel. lentamente fecho os olhos e entrevejo uma janela aberta e um cobertor que dança ao som daquela tua voz, inconfundível.

terça-feira, agosto 01, 2006

a janela sobre o tejo

acorda mais cedo. o sol entra-lhe pela janela e rouba-lhe a vontade de ficar sozinho. veste qualquer coisa sem vontade. sabe que a sua casa é a rua. ou será a rua a sua casa? seja como for, não está ninguém. ninguém com quem estar.
fingindo-se noutro lugar, caminha por ali, reflectindo o círculo que nele se instalou. afinal de contas é aquele o seu lugar. sente-se a percorrer a cidade pela primeira vez. será que hoje é o dia? não tem fome, só a sede do encontro. anda sem parar, por vezes apressa o passo, quando vê uma esquina, quem sabe o que virá a seguir...
anoitece - a estrada negra leva-o até ao bar. o homem abre-lhe a porta em silêncio. entra e procura com o olhar a mesa do fundo, junto da janela, que sempre lhe deu a sensação de estar debruçada sobre o Tejo. as duas cadeiras sempre ocupadas estão à sua espera, ambas vazias. o homem do bar regista o pedido antes que diga alguma coisa. as palavras já não fazem sentido, estão gastas. senta-se e espera pelo seu habitual martini.
era um prazer encontrar a sua solidão, quando sabia poder contrariá-la. o que é imposto é habitualmente sentido como obrigação e gosta-se de se ser livre. agora a solidão personaliza-se na angústia.
o gelo vai-se consumindo. o sabor agradável da bebida fica agora misturado com o da bebida final-de-copo. até isso lhe sabe mal. lembra-se de ontem. ontem? talvez anteontem, ou talvez antes ainda. esse sabor...era sabor de palavras que lhe ocupavam o tempo.

lembro-me de ti. de saírmos a correr por caminhos diferentes. as ruas estavam sempre cheias de ti. um de nós chegava primeiro e sempre se sentia aquele ambiente desconhecido, naquela que era a nossa casa. sorria-se. o homem do bar sorria também com o despropósito. falávamos até às tantas. às vezes pedíamos café. e voltávamos a casa por caminhos diferentes. ou voltávamos à rua por casas diferentes, já não me lembro bem.
um dia não estavas, quando cheguei. nunca mais chegaste. sobre a mesa, um copo de martini meio bebido.
depois não sei.


levanta-se de repente. não paga, mas o homem do bar também não parece importar-se. corre pelo caminho que ali lhe trouxe, irreflectidamente, na esperança dúbia de regressar ao passado. o silêncio parece sentir-se confortável e mantem-se inabalável, como se fosse dono e senhor do mundo. não deixa que se ouça o ruído insuportável de uma multidão que se aglomera e cresce infinitamente.
rapidamente é engolido. o barulho ensurdecedor não deixa ouvir o que tenta gritar à rua, numa última tentativa de voltar. de voltar a ter alguém com quem perder o sentido do tempo e das palavras, de voltar à liberdade de negar a solidão com um sorriso no rosto.

tanto tempo, contigo, tantas palavras...
só não me lembro de te ter dito “gosto de ti”.

quarta-feira, julho 12, 2006

holofote

dizem que crescemos à medida que os anos passam por nós. não é de todo mentira, não é de todo verdade. pensei hoje estar maior, não sei quanto tempo, quantos dias ou quantos anos. mas ninguém parece ter notado.

bebo-me o orgulho de um só trago e finjo acreditar que a maldade não existe. começo até a acreditar que é amor, esse modo de vida que me dói. acredito com a fé dos que acreditam em milagres, como se essa fosse a minha única esperança.
será que ouvem os meus soluços?
peço-vos pelo menos qualquer coisa. qualquer coisa em mim que vos faça sorrir. uma só que vos faça sentir que cresci. ou uma outra que vos faça pensar que sou único. que vos faça dizer – qualquer coisa.

já é tarde para o beijo de boa noite que nunca chegou. hoje já está distante. agora vivo o amanhã, sozinho. ocupo-me a reconhecer a perfeição dos meus defeitos e acaricio as minhas incapacidades. sorrio pela paz que respiro, e pelos cabelos brancos que me envolveram no momento certo e me mataram antes de vocês. choram a minha ausência e não me entristece. habituado a sobreviver com o peso que a desilusão carrega - que poderia eu fazer? nunca consegui encontrar o lugar onde guardavam o holofote – aquele que nos fazia fechar os olhos e viajar na ilusão de que nós próprios éramos a luz. talvez não me estivesse destinado, a mim.

a neve continua a embranquecer os meus cabelos. é tão doce, tão suave e tão fria, não me permite as saudades vossas, apenas entrever uma pequena luz,
que me conforta.

domingo, julho 09, 2006

margarida

porquê
roubar as minhas músicas?
dizer-me coisas bonitas?
pedir-me para ficar (contigo)?
beber-me o amargo do café?
falar-me de estrelas mortas?
querer o que penso do teu outro alguém?
se ao menos me oferecesses uma margarida...

sexta-feira, junho 30, 2006

ausência

tantas letras e tantas palavras que não se escreveram. sem mais nada e com tanto para dizer. um vazio que preenche um desenho de cansaço.
parecendo frio quando quente (um lugar seguro quando está destruído).
uma criança inocente e um gancho colorido de menina afirmando que a idade se perdeu pelo caminho.
uma lágrima a escorregar sabendo a qualquer coisa como a tristeza.
um olhar que se cruza e fica indeciso, perguntando-se para onde vai. perguntando-se porquê.
um riso estridente que não sabe dizer a verdade.

ausente sempre nesse silêncio que apaga, sem deixar rasto.

sábado, junho 10, 2006

me

i try to kill those ghosts inside of me
that voice you’ve spoke is yelling in my ears
(and i don´t believe in love fools)
i´d like to have those eyes you want to kiss______ wishing something
i wish i had that voice you want to hear_____________i believe in

(and i don´t belive in love fools)________________________ do you feel something
this feeling is so hard that i can´t breathe_________ wishing something
i wish you touch my hair when i´m asleep ________and i don' t know
(and i don´t belive in love fools)____________________________ tired of this
the words you wrote are putting me away___________ tired of that
i know that love was for somebody else______ I don´t know me myself and i

you and i know, you and i tried, you and i ran
leaving old stories far behind
and it feels good, and it´s so warm
having those eyes
playing with me myself and i

i try to kill those ghosts inside of me
the voice you´ve spoke is yelling in my ears______ and i don´t know
(and i don´t believe in love fools)
i´d like to have those eyes you want to kiss_____ wishing something
i wish i had that voice you want to hear_______________ i belive in
(and i don´t believe in love fools)____________________ i believe in me myself and i
_____________________________________________________me myself and i


you and i know, you and i tried, you and i ran
leaving old stories far behind
and it feels good, and it´s so warm
having those eyes
playing with me myself and i________________________tired of this
______________________________________tired of that

me myself and i - the gift

preso na música, fundido... a
perguntar porque nos obrigamos a pensar a simplicidade como patética...

quinta-feira, junho 08, 2006

11.25h

acordo ao som daquele tango reinventado. a letra arrasta-se e aquece-me com as notas dúbias que me encontram ainda meia adormecido.
hoje é daqueles dias, nem mais nem menos que outros.
apetece-me o sorriso. mas não consigo alcançá-lo. as lágrimas perguntam-me porquê? e fico sem resposta para a pergunta que sempre chega.
faltam hoje tantos dias para o futuro como antes, mas hoje é o futuro é mais breve. a independência está proxima e sei que também o desamor. a paixão que me mata a inércia, vai desaparecendo aos poucos - não consigo encontrar a terra, não tenho a água, nem o sol...acho que construí a minha casa do outro lado do mar e não me consigo lembrar.
talvez amanhã esteja no cais. às 11:25h.

onda sonora: gotan project - lunatico (o álbum todo)

sábado, junho 03, 2006

o sorriso dos outros

naquela noite,
existiu em mim o sorriso dos outros.
ausente, como não soube nunca ser diferente,
ficar assim com aquele sorriso, deixar o sangue ensaiar a despedida
respirar não respirar, ficar assim com aquele sorriso,
dentro de mim.
para quê?

domingo, maio 28, 2006

saudades

ontem
escolheste a tua cara de olhos tristes
escolheste o teu sorriso afável, para nos brindar.

ontem
só tu para nos fazer rir assim
só tu para nos fazer viajar através da tua voz melódica.

ontem
entristeci-me pela distância que nos separa
entristeci-me pela proximidade da tua ausência.

ontem
recordarei na saudade que me deste daquele abraço

que te apeteceu, no dia em que nos conhecemos.

ontem
é já tempo de futuro que não terá regresso

é já tempo de saudades tuas.

simetria (uma ode à amizade)

deviam ser umas cinco da manhã, quando chegaste. nem sei porque vieste. eu não te esperava.
despes a tua camisola preta, lentamente, como se o tempo fosse para ti, infinito. observo os teus movimentos lentos, quase sedutores e perco todos os significados que inventei para as emoções e para os sentimentos.
ficas nua, à minha frente. eu só consigo sentir a perplexidade de não te conhecer. choras. porquê? é a pergunta que o meu corpo insinua. respondes com mais uma lágrima salgada e um olhar angustiado. choro por ti, por nós, não sei, dizes-me. também eu choro, com medo da solidão que se aproxima; depois pela distância que a tua nudez tenta desmentir.
agora eu…
agora dispo a minha roupa sem hesitar.
olhas-me atenta. o meu rosto índio encontra-se com o teu. os cabelos negros e compridos, as peles escuras… encontramos quase a simetria perfeita. todos os pontos dos nossos corpos coincidem, a face, os braços, as mãos, os dedos, o tronco, o sexo, as pernas, os pés, tudo.
dançamos ao som de uma música que não conheço. poderosa, demasiado brutal para ser ignorada. a sintonia parece acontecer. doem-me as pernas, e os braços, acho até que me dói a alma, mas não consigo parar, não consigo desistir do que ainda não conheço. procuro um livro, ao acaso – leio-te kafka, depois cervantes, stendhal, neruda, pessoa, auster…ficamos horas assim, submersas nas palavras.
depois tu…
abraças-me. nesse momento sou uma criança pequena órfã de amor. e tu sabes cativar-me. convenço-me de que ficarás comigo. é nisso que quero acreditar. dou-te a mão e a adormeço nesse calor de quem confia. a mão que me dás já não me fere como antigamente, devolve-me, antes, a consciência do eu que já não reconhecia em mim.

a exaustão dos dias deixa-me imóvel, como uma estátua. sem querer descubro aquela música que dançámos e que sei de cor. encontro-a no meio de milhares de pessoas que a cantam quase como se fosse um grito de guerra (e talvez seja mesmo o grito da guerra de cada um). por entre as vozes distingo a tua. vem de longe. talvez seja um eco dentro de mim, talvez sejas mesmo tu que estás por ali. recordo-me daquele dia. as imagens sucedem-se rápidas e impiedosas. alguém no palco se mexe, com gestos amplos e pacientes, como os teus naquele dia. choro. sorrio. sei que foi nas tuas lágrimas que um dia encontrei a minha casa.


onda sonora: tool (live in SBSR, 26maio2006) - stinkfist

domingo, maio 14, 2006

aniversário

no dia do meu aniversário,
o espelho quebrado ao fundo do corredor, ausente da magia antiga, mostrar-me-á a cara de menina que nunca me abandonou. a infância já perdida há tanto tempo não voltará mais.
no dia do meu aniversário,
é apenas mais óbvio que há poemas que têm razão - hoje apenas duro e somam-se-me dias. amanhã, terá passado mais um dia em me senti vazia de mim mesmo. mais um dia em procurei vestir uma pele que nunca me serviu - o vestido preto está cada vez mais gasto.
no dia do meu aniversário,
sei apenas que perdi um dia em que poderia ter vivido. nada mais aconteceu. e que diferença fez? a mim, nenhuma, aos outros, nenhuma também. nunca senti, não me senti nunca. nunca alcancei o que um dia sonhei. hoje os sonhos já não me assaltam e ao menos consigo respirar.
no dia do meu aniversário,
quero estar sozinha. quero perder assim sozinha. quero esperar pelo nada que sei que chegará em breve.
no dia do meu aniversário,
todos se vestiram de negro. para me sorrir (talvez para me dizerem adeus, quem sabe?).

permaneço de pé, de olhos fechados (talvez ainda procurando qualquer coisa que me resista), espero pelo meu próximo aniversário, a que provavelmente já não assistirei.

onda poética: aniversário - álvaro de campos

quarta-feira, maio 10, 2006

olhos

passas por nós sem nos ver. como se não existissemos. talvez não o devessemos fazer, nem sequer tentar.
as flores amarelas que se vêem através das grades da janela, da sala, são de uma beleza serena, que não dói, mas que também não faz sorrir, porque não têm amor suficiente dar.

onde é o teu refúgio? porque não choras? de que tens medo?

chamam-te. e permaneces imóvel (terás ouvido?), de olhos tristes. tão tristes. que doí por dentro, que queimam como ácido, que petrificam. que levam todos na tua tristeza. desarmados.

deixas-me sorrir e dar-te a mão?

domingo, maio 07, 2006

origens

o característico desenho de Keith Haring lembram-lhe sempre aquele bloco de capa roxa e o postal verde que ela lhe ofereceu nos anos. há tanto tempo. hoje voltou a lembrar-se. o envelope vermelho (seria laranja?) e um fundo branco com o traçado a preto fê-la parar uns momentos antes de abrir o misterioso postal. lá dentro um cartão azul leva-a ao espanto. e umas palavras naquela letra que conhece tão bem. a curiosidade sempre foi o seu fraco. lê uma e outra vez, e outra. naquele momento foi feliz. pela tentativa. pela memória dos dias passados. pelos dias perdidos. pelo tempo recuperado. pelo gesto. pelo presente.
não está certa se alcançará a terra-mãe, mas decerto que está mais próxima. sorri. também de orgulho e de admiração.
daí a alguns meses, no meio de tanta vozes, duas vão querer cantar em uníssono. e regressar a si.

a ti, emi.

o grande irmão

a cidade está deserta. o silêncio absorve qualquer som que começa a surgir. tudo está aparentemente calmo.
regressa a casa. abre a porta tentando evitar que alguém repare.
acende a televisão, o ecrã mantém-se desligado. experimenta o rádio, também este permance calado. senta-se no sofá e desfolha uma revista mas não se consegue concentrar. telefona aos amigos e o atendedor é o único a atender as chamadas.
vagueia pela casa, sem sentido. começa a ficar nervoso. precisa de beber qualquer coisa. a tensão paira no ar e aquela sensação não desaparece. vai até à cozinha. em cima do balcão estão duas facas (não se lembra de as ter deixado ali). olha de novo, e vê uma mancha acastanhada. aproxima-se - não há dúvida, é sangue. sente-se desfalecer. fecha os olhos e abre-os lentamente. o balcão está, afinal, imaculado.
já não aguenta mais. não sabe se estará a ficar louco. apressa-se a sair de novo. e tudo está como antes. caminha com passos largos, começa a correr pois sabe que alguém o persegue, de certeza que está a ser observado.
à sua frente desenha-se um olho gigante que o engole.

quarta-feira, abril 19, 2006

canção de embalar

fiquei contigo no compasso em que dizíamos adeus
foi assim porque pude escolher.

recordo apenas a ausência da tua voz
preenche-me o silêncio, preenche-me a solidão.

deixa-me encontrar a tua boca salgada
vou partir depois de te dizer que ainda te amo.

ficava aqui esta noite até adormeceres
se me lembrasse da canção de embalar.

onda sonora: ficar (canção de embalar) – margarida pinto

domingo, abril 16, 2006

para quê a cruz?

I. a insatisfação de Deus ou a esperança ingénua de Jesus
Virou os olhos para Jesus, fez uma longa pausa, e depois, como quem se resigna ao inevitável, começou, A insatisfação, meu filho, foi posta no coração dos homens pelo Deus que os criou, falo de mim, claro está, mas essa insatisfação, como todo o mais que os fez à minha imagem e semelhança, fui eu buscá-la aonde ela estava, o meu próprio coração, e o tempo que desde então passou não a fez desvanecer, pelo contrário, posso dizer-te, até, que o mesmo tempo a tornou mais forte, mais urgente, mais exigente. (…)”
“E a minha morte, será como, A um mártir convém-lhe uma morte dolorosa, e se possível infame, para que a atitude dos crentes se torne mais facilmente sensível, apaixonada, emotiva, Não estejas com rodeios, diz-me que morte será a minha, Dolorosa, infame, na cruz (…)”
“(…) Diz lá, Tu és Deus, e Deus não pode senão responder com a verdade a qualquer pergunta que se lhe faça, e, sendo Deus, conhece todo o tempo passado, a vida de hoje, que está no meio, e todo o tempo futuro, Assim é, eu sou o tempo, a verdade e a vida, Então, diz-me em nome de tudo o que dizes ser, como será o futuro depois da minha morte, que haverá nele que não haveria se eu não tivesse aceitado sacrificar-me à tua insatisfação (…)”

O que quero que me digas é como viverão os homens que depois de mim vierem, Referes-te aos que te seguirem, Sim, se serão mais felizes, Mais felizes, o que se chama felizes não direi, mas terão a esperança de uma felicidade lá no céu onde eu eternamente vivo, portanto a esperança de viverem eternamente comigo, Nada mais, Parece-te pouco, viver com Deus, Pouco, muito ou tudo, só se virá a saber depois do juízo final, quando julgares os homens pelo bem e mal que tiverem feito, por enquanto vives sozinho no céu, Tenho os meus anjos e os meus arcanjos, Faltam-te os homens, Pois faltam, e para que eles venham até mim é que tu serás crucificado (…)”


II. a tigela negra ou a verdade de Deus

“(…) Digo que ninguém que esteja em seu perfeito juízo poderá vir a afirmar que o Diabo foi, é, ou será culpado de tal morticínio e tais cemitérios(…) o Diabo, sendo mentira, nunca poderia criar a verdade que Deus é(…)”
“ (…) Tens no teu alforge uma coisa que me pertence. Jesus não se lembrava de ter trazido o alforge para o barco, mas a verdade é que ele ali estava, enrolado, aos seus pés, Que coisa, perguntou, e, abrindo-o viu que dentro não havia mais que a velha tigela negra que de Nazaré trouxera, Isto, Isso, respondeu o Diabo, e tomou-lha das mãos, Um dia voltará ao teu poder, mas tu não chegarás a saber que a tens. (…)”
“Depois foi morrendo no meio de um sonho, estava em Nazaré e ouvia o pai dizer-lhe, encolhendo os ombros e sorrindo também, Nem eu posso fazer-te todas as perguntas, nem tu podes dar-me todas as respostas. Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios, e então, olhando para baixo, deu por um homem que se afastava com um balde e uma cana ao ombro. Já não chegou a ver, posta no chão, a tigela negra para onde o seu sangue gotejava.”

José Saramago (O Evangelho Segundo Jesus Cristo)


III. o sangue ou a luz

não sei de que verdades se vestem Deus e o Diabo. talvez da mesma verdade ou da mesma mentira.
Jesus, o filho de Deus, um homem entre os homens, morreu na cruz.
a insatisfação dos homens continua a ser a insatisfação de Deus, continuamente crescendo paralelamente. não somos hoje mais nada – nem mais felizes, nem mais esperançosos ou mais crentes. o céu é já oferta pouca.
resta a estória: as estórias que se escreveram do sangue que soube dar vida e que soube dar morte. sangue que enegreceu a tigela, que não mais se falou. sangue que nos deu a Luz e a paz, se a quiséssemos receber.
as vozes que dizem pregar a palavra de Deus, repetem: pecado, ridiculamente. já não têm mais o poder da infame morte na cruz, que já não têm mais a beleza, o amor, ou a paixão. nem o sangue de uma taça as pode reanimar.

hoje é páscoa – dia da ressurreição – mas já nada há para renascer.

quinta-feira, abril 13, 2006

um dia

Um dia dir-te-ei:
azul
e saberás ler nos meus lábios:
azul.

Um dia dir-te-ei:
qualquer coisa,
e sentirás em ti que
desejei estar do teu lado.

Um dia dir-te-ei
que já não sou capaz,
e saberás que há muito tinha perdido
a esperança.

Um dia dir-me-ás
paz,
na esperança de recuperarmos
o amor.

eu já estarei com as estrelas
e chorarás por mim.

conversas paralelas

- hoje, tenho muitos mais anos que tu. tenho até muitos mais anos do que tinha quando tu nasceste. pode parecer disparatado, mas quero dizer-te que tenho vivido exponencialmente, tudo o que vivi poderiam ter sido muitos mas muitos mais anos por isso te peço que sejas apenas um pouco diferente, que te comportes de outra forma, que repenses os teus objectivos – pois sei que serás mais feliz, porque sei que estás a cometer erros que poderás não poder reparar.
- ouço-te, rapidamente perdes a paciência quando temos de falar. e é raro que o teu discurso seja para mim – é sempre para o alguém que tu não foste. é raro que essas palavras sejam para me proteger. essas palavras são os rumos que gostarias de ter escolhido para ti. compreendo-te, talvez um dia também eu seja assim, mesmo que hoje me pareça impossível. infelizmente eu sou apenas eu e não posso realizar nenhum dos teus desejos- a não ser que neles contemples a minha felicidade. os meus projectos são tantos que provavelmente não os realizarei a todos, talvez nem um deles, mas ao menos deixa-me sonhar que um dia irei conseguir.
- sei que antigamente tudo era diferente. a vida era outra. as exigências também. as vezes penso que até os sentimentos eram outros. estou cansada desta vida, destas rotinas. mas há muito tempo que sabia que seria assim. vejo em ti, uma força que não é minha. és parecida – nessa rebeldia, nessa atitude, nessa ideias, nessa personalidade forte, mas não comigo. entendo-te mas... o que vão pensar? às vezes gostava que fosses como-toda-a-gente... pergunto-me muitas vezes o que terei feito de errado contigo.
- quando estou contigo sinto sempre que nos expressamos em línguas diferentes, nem eu nem tu nos encontramos. tu conversas contigo e eu comigo, numa conversa paralela em que apenas ouvimos a nossa própria voz. gostava de ser mais paciente contigo, gostava de te dar o espaço que também tu precisas...
gostava que me deixasses cair, deixasses errar, deixasses ser infeliz, assim com tudo a que temos direito. às vezes, sinto que gostava de ser parte dessa igualdade, para te ver sorrir, para eu sorrir, na pacificidade dessa escolha.
desculpa mas nunca sou capaz.

terça-feira, abril 04, 2006

um café argentino


quatro da tarde, 32º C. por hoje, terminou o trabalho. está cansada e o calor amolece-a ainda mais. apanha o autocarro, que já vai cheio – na maioria pessoas vindas do trabalho, de todas as idades, todas as classes sociais. o autocarro é um transporte popular, poderia até ser agradável se não estivesse tanto calor. só pensa em chegar a casa, a ânsia faz o caminho demorar-se mais.
chega a casa. toma um duche frio e demorado. escolhe um vestido branco que faz sobressair o moreno bronzeado da pele. olha-se ao espelho – uma lágrima corre-lhe pela face. o entardecer espera-a lá fora. sai e caminha lentamente sem ver por onde vai – não tem lugar algum para ir. numa rua estreita e pouco iluminada, o cheiro do café amargo contamina o ar. entra num café mal iluminado. apenas se ouvem sussurros, e as colheres que mexem o café nas chávenas. senta-se e espera. espera por nada. espera que o tempo passe – que a vida passe e lhe diga adeus.
alguém se aproxima e senta-se sem pedir licença. é ele. deseja que se afaste mas não consegue impedi-lo de ficar. não diz nada. mas o silêncio conta uma estória triste. e ela já não está lá.
corre descalça pela rua, os sapatos de salto alto na mão, as lágrimas a secarem no rosto. o desespero de ter perdido outra vez. tudo. amanhã não lhe apetece começar de novo.
na praça uma mulher canta um tango, com uma voz hipnótica. canta apenas para si. talvez já esteja embriagada, talvez seja louca, talvez esteja morta. fica imóvel e deixa-se ferir por cada palavra, por cada momento. começa a regressar sem dar conta. quer saborear um café, um amargo café argentino, numa esplanada deserta, na companhia de um piano desafinado.
os sonhos, o amor, o futuro já não existem. quatro da manhã, 27ºC.
amanhã cantar-lhe-á o tango, aquele tango, de vestido branco e sapatos altos, de alma perdida – é assim que vai querer morrer.

segunda-feira, março 27, 2006

"it seemed a place for us to dream"

a escuridão da noite, a voz melodiosa que se arrasta, a música quase viva persegue-me. sou obrigado a partir, talvez numa viagem até ao passado que não sei querer recordar.
a paixão morreu, o lugar dos sonhos desapareceu, parte de mim adormeceu contigo.
ontem revivi-te sem querer. ontem, a minha casa foi incendiada. não tenho mais onde morar.

onda sonora: narcoleptic - placebo

segunda-feira, março 20, 2006

carta

sei que o dia de nos encontrarmos chegará em breve. apesar de te ir conhecendo, tenho um medo terrível de me desiludir. o futuro tem-me dado algumas pistas, todas elas assustadoras. sei que és única. mas ainda não encontrei o que há de bom nessa exclusividade. por vezes sinto que estás a fugir-me, que caminhas para um abismo onde te queres refugiar do mundo. e a mim? o que me resta? só perder. derrotar-me e derrotar-te.
às vezes penso que a tua dor foi mais forte que tu. a sensibilidade madura, a inteligência relacional e dos sentimentos, que te definiam converteu-se agora numa frieza cadavérica – nada te choca, nada te move, nada te emociona. já poderias ser uma massa inerte e, no entanto, pareces ficar satisfeita. decerto que algo está a acontecer. só assim posso justificar essa tua passividade.
a única coisa que me descansa é o brilho dos teus olhos – ainda te restas. mesmo assim não consigo deixar de temer por ti. és a âncora de todos. e tu?, o teu porto parece estar distante e a tempestade aproxima-se. tenho esperança num sol por entre as nuvens.

encontrar-me-ei comigo no futuro próximo. as incertezas desaparecerão pela impossibilidade de coexistirem com a verdade de mim. a originalidade provavelmente não terá hipótese contra a necessidade imperativa de sobrevivência que dita a igualdade. pergunto-me se cederei à loucura de seguir o caminho que desejo. e cá dentro há um medo brutal de falhar o alvo, de voltar à indiferença. sossega-me saber que o abrigo desta vez é mais seguro, apenas um pouco mais.

domingo, março 19, 2006

as poesias de cada um são infinitas

gosto desta fidelidade das palavras, desta exactidão na organização das frases.
gosto destes significados que se multiplicam sempre que volto a ler (estas e outras prosas).
gosto de pensar que são todas minhas, as palavras, nunca me pertencendo por inteiro.
gosto de sentir que são de toda-a-gente, que se completam em cada alma, e que lembram um sonho a alguém que eu não conheço e que não me conhece, que dão uma esperança ainda que ínfima a quem já nada espera, que criam sorrisos ou que fazem perder uma lágrima a alguém. as palavras são as mesmas, as frases também, contudo as poesias de cada um são infinitas.
gosto de saber que só há uma maneira de ler – a nossa. e é tão própria, tão única e tão diversa quanto nós. e é isso que dá sentido a esta partilha de expressões egoístas – quem as lê na sua vida, dessa maneira tão particular que eu não posso sequer inventar ou imaginar.

gosto de acreditar que é assim que acontece, para que o catavento continue a girar.

sábado, março 11, 2006

o primeiro minuto

naquele momento só tu contas, só tu és importante. conhecemos-te pela primeira vez. não te imaginámos assim, da cor da morte. e agora ainda que feio, só conseguimos gostar de ti. foi tão difícil chegar até aqui. pensámos que o derradeiro momento seria diferente. a dor mais que física é a dor de nos separarmos de ti. a dor de já não seres apenas nosso. agora apenas a ti pertences.

havia uns sons, que agora sei serem vozes, nada fazia sentido. mas não me sentia perdido, era como já conhecesse aquelas presenças. e apenas pude sorrir. não recordo o rosto que vi pela primeira vez, recordo sim o tacto daquela pele macia. é isso que me abraça quando não consigo dormir. é só isso que me acalma quando choro. e aquele amor, pairava por ali. como vou esquecer aquela felicidade? está calor, mas não aquele calor envolvente que havia antes daquele momento. esse nunca mais aconteceu. ouvi dizer que esta dor se chama crescer.

durante tanto tempo preparei a tua vinda. o tempo foi passando. estudei tudo o que poderia acontecer. previ o acontecimento seguinte com a capacidade de uma vidente experiente. às vezes lia as estrelas, mas nunca vi a dificuldade, nunca percebi o que aconteceria quando chegasses. e agora que aqui estás junto a mim, nada é como imaginei. abraço-te. sei que és capaz de me ler os pensamentos e por isso tento só pensar em ti. como será crescer contigo?levam-te e cedo à angústia. tenho medo de te perder.

um passeio pela cidade

não há direcções a seguir. as construções povoam os espaços e impedem a passagem totalmente aleatória. mas não se pode negar como gostamos de nos esconder por detrás desses muros. de nos fingirmos cegos, para depois nos quedarmos deslumbrados no que está para lá das altas paredes e das estranhas esquinas.

há fadas que esvoaçam. há duendes, gnomos...casas de chocolate, de doces. é possível viajar até às nuvens e ver o sol nascer de perto. as bruxas existem – conseguimos ouvir o seu riso estridente ao longe. conhecemos o medo e também a coragem.

jardins, monumentos, abelhas, restaurantes, sapatos, bares, ruas sombrias, flores, iluminação nocturna, bancos, pessoas – gentedenegócios, artistasderua, mendigosdojardim, trabalhadorescomuns, gentevelha, criançasderua, apenaspessoas, relógios, ambientes, pedras, roupas, estilos, sons... todas as coisas, todos os lugares, todos os tempos se concentram - preto no branco, branco no preto. a preto e branco, a não cor. ninguém consegue ver o momento paralelo à distância de um sorriso, de uma recordação feliz, de uma esperança no futuro melhor.

encanto. predomina a cor. enche o ecrã, onde se movem os personagens. e também nós ali estamos e sem esperarmos, acontecemos. a simplicidade. os pormenores. só podemos querer ir por ali.

por detrás daquela esquina é paris, talvez a terra do nunca.


onda sonora: le fabuleux destin d’amelie poulain - yann tiersen

ando por aí

há dias que me consomem. de tão ausentes. de tão intensos. e nada mais existe. nada mais há a dizer. tudo acontece na realidade, só acontece onde ninguém vê. julgam-me desaparecido mas estou por aí: ocupado a viver.

domingo, fevereiro 12, 2006

palavras

palavras
escritas
em que me despia
para te falar
baixinho de amor,
talvez.
palavras
que se consumiram
no momento em que parti
só para lugar nenhum.
palavras amargas
apertadas
pela solidão
a que se condenam
lentamente.
palavras
que nos dizem
sem quererem
adeus.


onda poética: adeus ("já gastámos as palavras...") - eugénio de andrade

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

remoinho

o gás a libertar-se no copo num líquido amarelo. e ele a deixar-se levar pelas bolhas cada vez maiores. há uma voz ao fundo que já deixou de reclamar atenção. há figuras de pessoas em volta, mas tão longe daquele minuto de laranja. e depois há o espaço, os ruídos e os cheiros- os sentidos misturam-se e adormecem-se uns aos outros. há um moinho. há o auto-retrato de van gogh no muro de um castelo que se completa dia após dia. há alguém que lhe pede explicações. há o nó no estomâgo que o mata lentamente. há o momento da coragem. há a chuva que revela os pensamentos. há o não-tempo.
e depois o gás a libertar-se no copo num líquido preto. e depois?

sábado, fevereiro 04, 2006

ontem

escrevo-te agora que já estou longe. já não me podes surpreender numa despedida. não tinha nada para te dizer, nada que me fizesse sentido. nesse momento, eu nem existiria perto de ti.
nunca cheguei a saber que parte de mim tu compreendias. talvez a minha presença, talvez. (e agora como será, depois de mim?). nunca soube como interpretar estas coisas, estes sinais.
quando hoje penso em ti, penso no que te irá acontecer e sonho em ir visitar-te quando voltares a casa. mas por outro lado, não quero sentir mais essa dor que me causas, por ainda não saberes. nunca te vi chorar, nunca!, provavelmente, chorarias por dentro, ou já não terias nada mais para chorar. tentei dar-te o que de melhor havia em mim, o que muitas vezes era pouco, e muitas outras não consegui. mesmo assim, presenteaste-me com o teu sorriso. lembro-me de regressar a casa feliz nesse dia e no outro e no outro...

talvez isto pudesse ser um pedido de desculpas ou talvez um obrigado*

segunda-feira, janeiro 09, 2006

salvar uma vida

tens de viver. aconteça o que acontecer, se viveres é porque nós conseguimos salvar-te a vida. é porque nós fizemos a nossa missão. não te deixámos ir. e é isso que está certo, salvar a vida, a todo o custo.
provavelmente nunca saberás quem és. não te moverás. não falarás. não aprenderás. e nós raramente chegaremos a ti, porque não temos tempo, porque não sabemos como, porque isso já não é importante, porque tu apenas tinhas de ser salva.
não podes comer, nunca soubeste... só te é permitido descobrir que metade de ti existe, porque a outra já foi esquecida antes de a poderes conhecer. não podes andar ou correr. o teu coração bate quase sem força, a tua respiração é lenta, estás quase imóvel. sofres mas não choras. para quê? sabes já que não vale a pena porque ninguém correrá para te abraçar. mas se a máquina apitar correrão para te salvar de novo.
embalo-te e tento dar-te o carinho que não tiveste. adormeces. és tão bonita.
e nesse momento desejo que o que chegará em breve chegue mais cedo do que os salvadores pensam. não consigo suportar essa ideia egoísta de salvar - salvar o que morreu, salvar para doer, salvar para matar. isso é salvar? salvar é prender-te a este mundo onde nunca poderás ir a lugar algum?
vai agora, ninguém vai reparar e eu não direi nada a ninguém. guardarei o teu segredo em mim pois nunca houve nada tão celeste como tu.

para ti

para ti
tenho silêncio
para ti
tenho solidão
para ti
tenho liberdade
para ti
tenho diferença
para ti
tenho paz
para ti
tenho amizade
para ti
tenho amor
para ti
tenho palavras
para ti
terei perfeição.